Uma descoberta do coração: a “natureza”

J.-P. Sartre, Merleau-Ponty vivant, in Les Temps modernes, 1961, n. 184-185, pp. 363-365.

Foi uma descoberta do coração: a prova é que impressiona pela sua densidade sombria. Vou contar-vos como ele (= Merleau-Ponty) me falou disso, há cerca de dois anos: o homem é retratado nestas palavras, subtil, lacónico, enfrentando os problemas de frente quando parece que só os toca de lado. Perguntei-lhe se trabalhava. Hesitou: “Talvez”, disse, “escreva sobre a Natureza”. Acrescentou, para me orientar: “Li uma frase em Whitehead que me impressionou: a Natureza está em farrapos. Como já adivinhou, não acrescentou uma palavra. Deixei-o sem ter compreendido: nessa altura, eu estudava o “materialismo dialético” e a palavra “Natureza” evocava para mim o conjunto dos nossos conhecimentos físico-químicos. Outro mal-entendido: tinha-me esquecido que a Natureza, aos seus olhos, era o mundo sensível, esse mundo “decididamente universal” onde encontramos as coisas e os animais, o nosso próprio corpo e os outros.

… Merleau interroga o pintor e o seu modo de pensar selvagem e manual: tenta apreender o sentido da pintura nas obras. Nesta ocasião, a Natureza revela-lhe os seus trapos. Essa montanha ao longe”, diz-nos ele, ”como é que ela se anuncia? Por sinais descontínuos, por vezes intermitentes, fantasmas finos e esparsos, brilhos, jogos de sombras; esta poeira impressiona pela sua inconsistência. Mas é precisamente o nosso olho que é “Computador do Ser”; com estes sinais do ar, ele produzirá a aparência da massa mais pesada da terra. O olho já não se contenta em “vislumbrar o ser através do movimento do tempo”: parece ter agora a tarefa de erigir do múltiplo a sua unidade sempre ausente. Então não é? perguntar-se-á. É, não é: como a roupa defunta que assombra os trapos, como a rosa de Mallarmé “ausente do bouquet”. O ser é através de nós que somos através dele. Tudo isto, claro, não é sem o Outro; é assim que Merleau entende a “difícil” afirmação de Husserl: “A consciência transcendental é intersubjetividade”.

Como poderíamos compreender o que é se não o fôssemos? Não estamos a lidar aqui com uma simples “noesis” que produz o seu correlativo noemático através de aparições. Mais uma vez, pensar que temos de ser: a coisa através de todos por cada um constituída, sempre una mas indefinidamente biselada, remete-nos, cada um por todos, para o nosso estatuto ontológico.

Nós somos o mar; assim que emerge, cada naufrágio é incontável como as ondas, através delas e como elas absoluto. O pintor é o artesão privilegiado, a melhor testemunha desta reciprocidade mediada. “O corpo está preso no tecido do mundo, mas o mundo é feito do tecido do meu corpo. Esta é uma nova reviravolta, mas mais profunda do que as outras, pois toca no “labirinto da encarnação”; através da minha carne, a Natureza torna-se carne. Inversamente, as veias do ser que o pintor vê na coisa e fixa na tela devem designar, no fundo de si mesmo, as “flexões” do seu ser. Pela figuração do ser exterior, ele apresenta aos outros o ser interior, a sua carne, a carne deles. O artista tem a função sagrada de instituir o ser no meio dos homens, o que significa ultrapassar “as camadas de ser bruto que o ativista ignora” em direção a esse ser eminente que é o sentido. A expressão”, diz ele, ”é o fundamental do corpo.

E o que é que há para exprimir se não o ser? Não se faz um movimento sem o restaurar, instituir e apresentar. A historicidade primordial, o nosso nascimento até à morte, é a emergência das profundezas através da qual o acontecimento se torna homem e declina o seu ser ao nomear as coisas. Esta é também a história do grupo na sua forma mais radical.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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