Trawny (2015) – errância

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Aqui temos de estar atentos, bem como de exercer o nosso discernimento. Porque quando um filósofo começa a misturar o que aparentemente se opõe à verdade, isto é, a mentira, com a verdade, a perverter uma na outra, então o sofista não está longe. Será possível que Heidegger seja o sofista da modernidade? Quem poderia negar que esta questão é sugerida precisamente pela publicação das Schwarze Hefte? Heidegger liberta nelas a sua ira. Surge um pensador que lança os seus raios sobre tudo o que não resiste à pureza do olhar filosófico. Para Heidegger, quem der ouvidos a qualquer pretensão que não seja a de “pensamento e poesia” está perdido. Neste sentido, a sua retórica é, por vezes, muito estranha. Mas, em última análise, não se trata de sofismas. Os problemas não residem na antiga querela entre filósofos e sofistas.

É apenas o pensamento (e a poesia) que dá sentido ao mundo e à história. Só onde o pensamento levanta a “questão do sentido do ser” é que ele pode, como a forma mais pura de “Da-sein”, tecer os fios de sentido pertencentes ao mundo e à história numa narrativa poética que se inspira no drama da tragédia. Nem a política, nem a ciência, nem a religião e, por fim, nem mesmo a arte podem pretender ter um papel fundamental nesta narrativa — até porque são incapazes de a desenrolar. O pensamento abandona a filosofia e começa — sem se tornar poesia — a poetizar o drama.

O que emerge nesse drama é uma topografia em que o verdadeiro e o falso formam juntos o possível, o atual e o necessário. Mas isso ainda diz muito pouco: “A verdade, na sua essência, é uma não-verdade.” O hífen entre “não” e “verdade” deixa transparecer aquilo que, antes de mais, caracteriza o acontecimento apropriativo da verdade na sua totalidade: onde algo se mostra como verdadeiro, “algo” se oculta que — porque o seu significado não é conhecido — desvia o pensamento. Devo notar que a dissimulação pertence a este mostrar. Mas quem é que repara na ocultação?

Assim, a topologia da relação entre “errância” e “desobstrução” situa-se naquilo que Heidegger elucida, num número tremendo de passagens, como “des-encobrimento (Unverborgenheit)”. “Des-encobrimento” é a tradução mais ou menos literal da palavra grega ἀλήθεια. Heidegger consultou os enunciados mais antigos sobre a verdade (em Heráclito, Parmênides, Píndaro), entendendo os posteriores (já em Platão) como derivados. O fato de o primeiro caminho para a verdade conduzir aos “gregos” é já um aspecto dessa narrativa da tragédia que Heidegger tenta transferir para o mundo e sua história.

Moore & Turner

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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