teologia

Theologie

[…] Seria bom afastar desde o início desta preleção as conotações teológicas do pensamento originário e, com isso, a opinião de que a teologia determinou o início da filosofia. Pois os deuses e o divino da Antiguidade grega não se prestam a uma teologia, mesmo quando se toma o termo em sentido amplo e não apenas como explicação racional e ordenamento da doutrina de uma “religião” dada. Não existe, absolutamente, “religião” grega. A palavra religio e o que ela designa são essencialmente romanos. [28] Por não existir nenhuma “religião” grega, também não existe nenhuma “teologia” grega. [tr. Schuback; GA55:13-14]

O método da ontologia, isto é, da filosofia em geral, é distinto pelo fato de a ontologia não possuir nada em comum com nenhum método das outras ciências, das ciências que, enquanto ciências positivas, tratam todas do ente. Por outro lado, justamente a análise do caráter de verdade do ser mostra que o ser também se funda por assim dizer em um ente, a saber, no ser-aí. O ser só se dá se a compreensão de ser, ou seja, se o ser-aí existe. Este ente requisita, por conseguinte, uma proeminência insigne na problemática da ontologia. Essa proeminência manifesta-se em todas as discussões dos problemas ontológicos fundamentais, antes de tudo na questão fundamental acerca do sentido de ser em geral. A elaboração e resposta a essa questão exige uma analítica geral do ser-aí. A ontologia tem por disciplina fundamental a analítica do ser-aí. Isto implica ao mesmo tempo o seguinte: a própria ontologia não pode ser fundamentada de maneira puramente ontológica. A sua própria possibilitação é remetida a um ente, isto é, a algo ôntico: o ser-aí. A ontologia possui um fundamento ôntico, algo que sempre transparece uma vez mais mesmo na história da filosofia até aqui e que se expressa, por exemplo, no fato de já Aristóteles dizer: a ciência primeira, a ciência do ser, é TEOLOGIA. Como obra da liberdade do ser-aí do homem, as possibilidades e os destinos da filosofia estão presos à existência humana, isto é, à temporalidade e, com isso, à historicidade, e, em verdade, em um sentido mais originário do que qualquer outra ciência. Assim, no interior do esclarecimento do caráter de ciência da ontologia, a primeira [35] tarefa é a demonstração de seu fundamento ôntico e a caracterização dessa fundação mesma. GA24MAC: §5

Antes de adentrarmos a interpretação dessa tese, é importante caracterizar de maneira sucinta o contexto material, no qual ela vem à tona. Esse contexto já salta aos olhos no título do primeiro escrito citado e, do mesmo modo, no título da seção correspondente da Crítica da razão pura. Trata-se da prova do ser-aí, da existência, da realidade efetiva e, como dizemos, da presença à vista de Deus. Nós nos encontramos diante do fato estranho de Kant discutir o conceito mais universal de ser em geral lá onde trata da cognoscibilidade de um ente totalmente determinado, de um ente [48] insigne, de Deus. Para quem conhece a história da filosofia (ontologia), porém, esse fato é tão pouco estranho que é justamente ele que deixa claro o quão diretamente Kant se insere na grande tradição da ontologia antiga e escolástica. Deus é o ente supremo, summum ens, o ente mais perfeito, ens perfectissimum. Aquilo que é da maneira mais perfeita possível é aquilo que, na maioria das vezes, evidentemente mais se presta ao papel do ente exemplar, do qual se pode extrair a ideia do ser. Deus não é apenas o exemplo ontológico fundamental do ser de um ente, mas Ele é ao mesmo tempo o fundamento originário de todo ente. O ser do ente não divino, ou seja, o ser do ente criado, precisa ser compreendido a partir do ser do ente supremo. Por isso, não é por acaso que a ciência do ser está orientada em um sentido eminente pelo ente Deus. Isto chega a tal ponto que Aristóteles já denominava a prote philosophia, a filosofia primeira, theologia. Neste caso, contudo, precisamos atentar para o fato de esse conceito de TEOLOGIA não possuir nada em comum com o conceito atual da TEOLOGIA cristã como uma ciência positiva. Ele não tem nada em comum com esse conceito senão a palavra. Essa orientação da ontologia pela ideia de Deus teve uma significação determinante para a história subsequente da ontologia e para o seu destino. Não precisamos tratar agora da legitimidade dessa orientação. Basta ver que não há nada de surpreendente no fato de Kant discutir o conceito de ser ou de existência no contexto da possibilidade do conhecimento de Deus. Mais exatamente, o que está em questão para Kant é o problema da possibilidade da prova ontológica da existência de Deus, uma prova que foi assim designada por ele pela primeira vez. Faz-se patente aqui uma vez mais o fato notável, com o qual sempre nos deparamos tanto na filosofia pré-kantiana quanto na filosofia pós-kantiana, e, em seu caso mais extremo, em Hegel, a saber, o fato de o problema do ser em geral estar associado da maneira mais estreita possível com o problema de Deus, com o problema da definição de sua essência e da demonstração de sua existência. Não podemos explicitar aqui em que está fundamentada esta estranha conexão que, contudo, não é de início de maneira alguma [49] óbvia; pois uma tal explicitação exigiría que discutíssemos as bases da filosofia e da metafísica antiga. O fato persiste mesmo em Kant e ele é a prova de que, de início totalmente extrínseca, o modo kantiano de questionamento ainda transcorre nas vias da metafísica tradicional. Mas passagens citadas, Kant trata da possibilidade da prova ontológica da existência de Deus. Essa prova tem como peculiaridade o fato de tentar inferir a partir do conceito de Deus o seu ser-aí, isto é, a sua existência. A ciência filosófica que, segundo a opinião de Kant, procura estabelecer algo dogmaticamente sobre o ente puramente a partir de conceitos é ontologia, ou, dito em termos tradicionais, a metafísica. Por isso, Kant denomina essa prova a partir do conceito de Deus a prova ontológica; e ontológico significa o mesmo que dogmático ou metafísico. O próprio Kant não nega a possibilidade da metafísica, mas busca precisamente uma ontologia científica, cuja ideia ele define como sistema da filosofia transcendental. GA24MAC: §7

Suarez faz parte da assim chamada Escolástica Tardia, que se vivificou uma vez mais na época da Contrarreforma na Espanha na Ordem dos Jesuítas. Santo Tomás era dominicano, membro da Ordem dos Predicadores, Duns Scotus [121] era franciscano da Ordem dos Frades Menores. Suarez foi o pensador, que influenciou da maneira mais intensa possível a filosofia moderna. Descartes é diretamente dependente dele e utiliza quase que inteiramente a sua terminologia. Foi Suarez quem sistematizou pela primeira vez a filosofia medieval, sobretudo a ontologia. Antes disso, a Idade Média, mesmo em Santo Tomás e Duns Scotus, só tinha tratado da Antiguidade em comentários, que analisavam os textos continuamente. O livro fundamental da Antiguidade, a Metafísica de Aristóteles, não possui nenhuma construção sistemática. Suarez viu isso e buscou suprir essa falha, pois foi assim que ele a considerou, dispondo pela primeira vez os problemas ontológicos de uma forma sistemática, que determinou nos séculos seguintes até Hegel uma introdução da metafísica. Distingue-se de acordo com isso uma metaphysica generalis, ontologia geral, de uma metaphysica specialis, e, em verdade, dividida em cosmologia rationalis, ontologia da natureza, psychologia rationalis, ontologia do espírito, e theologia rationalis, ontologia de Deus. Esse agrupamento das disciplinas filosóficas centrais retorna na Crítica da razão pura de Kant. A “lógica transcendental” corresponde em seu fundamento à ontologia geral. Aquilo de que Kant trata na “dialética transcendental”, os problemas da psicologia racional, da cosmologia e da TEOLOGIA, corresponde àquilo que a filosofia moderna colocou em questão. Suarez, que apresentou sua filosofia nas Disputationes metaphysicae (1597), não teve apenas uma grande influência sobre o desenvolvimento ulterior da TEOLOGIA no interior do catolicismo, mas juntamente com o seu companheiro de ordem Fonseca também exerceu um forte efeito sobre a formação da Escolástica Protestante nos séculos XVI e XVII. A solidez e o nível filosófico dos dois são muito mais elevados do que aqueles alcançados por Melanchthon, por exemplo, em seus comentários sobre Aristóteles. GA24MAC: §10

Se considerarmos essas concepções escolásticas de maneira apenas superficial e as tratarmos como escolásticas no sentido usual, isto é, como controvérsias sutis e sofisticadas, então precisaremos abdicar da compreensão de problemas centrais da filosofia em geral, que se encontram à base dessas concepções. O fato de a Escolástica só ter proposto e discutido essas questões de maneira imperfeita não é razão alguma para que nos dispensemos do próprio problema. Seu modo de questionamento precisa continuar sendo avaliado de maneira mais elevada do que o inexcedível desconhecimento desse problema na filosofia atual, que não se porta de forma suficientemente metafísica. Precisamos tentar penetrar no conteúdo material central do problema escolástico e não nos deixar perturbar pelas controvérsias de fato com frequência complicadas e cansativas das correntes escolásticas particulares. Nós nos restringiremos na apresentação dessas opiniões doutrinárias e dessas controvérsias ao essencial. Ficará, então, claro o quão pouco são clarificados os problemas da própria ontologia antiga, a cujas premissas a discussão escolástica retorna em última instância e com cujas premissas a filosofia moderna também trabalha como se se tratasse de uma obviedade. Nós nos abdicamos de apresentar e discutir as argumentações particulares. O conhecimento penetrante desse problema e de seu enraizamento na Escolástica é o pressuposto para a compreensão da TEOLOGIA medieval e protestante. A TEOLOGIA mística da Idade Média, por exemplo, a TEOLOGIA do Mestre Eckhart, tampouco se encontra de algum modo acessível se não se concebe a doutrina da essentia e da existentia. GA24MAC: §10

O elemento característico da mística medieval é o fato de que ela tenta considerar em sua essencialidade mesma o ente estabelecido ontologicamente como a essência propriamente dita, Deus. Nesse caso, a mística chega a uma especulação peculiar; e peculiar, porque ela transforma a ideia da essência em geral, isto é, uma determinação ontológica do ente, a essentia entis, em um ente, tornando o [136] fundamento ontológico de um ente, sua possibilidade, sua essência, aquilo que é propriamente real e efetivo. Essa estranha transformação da essencialidade em um ente mesmo é o pressuposto para a possibilidade daquilo que se denomina a especulação mística. Por isso, Mestre Eckhart fala na maioria das vezes do “ser suprassensível”, isto é, o que lhe interessa não é propriamente Deus – Deus ainda é para ele um objeto provisório –, mas a divindade. Quando Mestre Eckhart diz Deus, ele tem em vista a divindade, não a natureza, mas aquilo que se acha acima da natureza, ou seja, a essência; a essência à qual se nega ainda por assim dizer toda e qualquer determinação existencial, da qual precisa permanecer afastada toda e qualquer additio existentiae. Por isso, ele também diz: “Caso se dissesse de Deus, que Ele é, então isso seria acrescentado a Ele”. Essa é a tradução alemã de que se teria aqui uma additio entis, como diz Santo Tomás: “Assim, Deus não é no mesmo sentido, nem no mesmo conceito que todas as criaturas”. Com isso, Deus é para si mesmo o seu não, ou seja, ele é como o ser mais universal de todos, como a mais pura e ainda indeterminada possibilidade de tudo aquilo que é possível, como o puro nada. Ele é o nada em comparação com o conceito de todas as criaturas, em comparação com tudo aquilo que é determinadamente possível e efetivamente realizado. Também encontramos aqui um estranho paralelo com a determinação hegeliana do ser e com a sua identificação com o nada. A mística da Idade Média, dito de maneira mais exata, a TEOLOGIA mística, não é mística em nosso sentido, que é um sentido pejorativo. Ao contrário, é preciso conceber o seu caráter místico em um sentido totalmente eminente. GA24MAC: §10

Quando consideramos a origem da ontologia antiga a partir do comportamento produtivo e intuitivo em relação ao ente, um outro ponto também se torna compreensível, algo de que gostaríamos de tratar agora de maneira breve. Em si, não é de modo algum óbvio que a filosofia antiga na Idade Média tenha sido acolhida pela TEOLOGIA cristã. Afinal, faticamente, mesmo Aristóteles, que a partir do século XIII determina normativamente a TEOLOGIA cristã, e não apenas a católica, só ganhou a posição de autoridade que ele desde então possui depois de pesadas lutas e confrontações. A razão pela qual [176] isso pôde acontecer, porém, reside no fato de, para a concepção de mundo cristã, de acordo com o relato da criação do Gênesis, todo ente que não é Deus ser criatura. Esse é um pressuposto óbvio. Ora, mas ainda que a criação a partir do nada não seja idêntica à produção de algo a partir do material previamente dado que se encontra aí defronte, esse criar próprio à criação possui o caráter ontológico do produzir. A criação também é interpretada em um sentido qualquer com vistas ao produzir. A ontologia antiga era, em seus fundamentos e conceitos fundamentais, apesar das origens diversas, por assim dizer talhada para a concepção cristã de mundo e para a concepção do ente como ens creatum. Como o ens increatum, Deus é o ente que pura e simplesmente não precisa ser produzido e a causa prima para todos os outros entes. Com certeza, por meio da recepção na Idade Média, a ontologia antiga recebeu um redirecionamento essencial, do qual trataremos agora de maneira mais minuciosa. No entanto, por meio dessa transformação levada a termo pela Idade Média, a ontologia antiga entrou, por intermédio de Suarez, na Modernidade. Mesmo onde a filosofia moderna, tal como em Leibniz e em Wolff, realiza um retorno autônomo à Antiguidade, esse retorno acontece em meio à compreensão dos conceitos fundamentais antigos que tinha sido prefigurada pela Escolástica. GA24MAC: §12