Se o ser deve ser concebido a partir do tempo, e os diversos modos e derivados de ser, em suas modificações e derivações, só são, com efeito, compreensíveis na perspectiva do tempo, o que então se mostra é o próprio ser, e não apenas o ente, enquanto sendo e estando “no tempo”, em seu caráter “temporal”. Desse modo, “tempo” não mais poderá dizer apenas “sendo e estando no tempo”. Também o “não temporal”, o “atemporal” e o “supratemporal” são, em seu ser, “temporais”. E isso não apenas no modo de uma privação do ente “temporal”, entendido como “sendo e estando no tempo”, mas num sentido positivo que, naturalmente, ainda se deverá esclarecer. Como a expressão “temporal” é usada tanto na linguagem pré-filosófica como na linguagem filosófica no sentido indicado, e como, por outro lado, essa expressão é tomada na presente investigação em outro sentido, denominaremos a determinação originária do sentido de ser e de seus modos e caracteres a partir do tempo de determinação temporânea (temporale Bestimmtheit). A tarefa ontológica fundamental de uma interpretação originária do sentido de ser inclui, portanto, a elaboração da TEMPORANEIDADE de ser (Temporalität des Seins). É na exposição da problemática da TEMPORANEIDADE que se há de dar uma resposta concreta à questão sobre o sentido de ser. STMSC: §5
De acordo com a tendência positiva da destruição, deve-se perguntar de saída se, e até onde, no curso da história da ontologia, a interpretação de ser está tematicamente articulada com o fenômeno do tempo e se, e até onde, a problemática da TEMPORANEIDADE, aqui necessária, foi e podia ter sido elaborada em princípio. Kant foi o primeiro e o único a dar um passo no caminho da investigação para a dimensão da TEMPORANEIDADE. Ou melhor, Kant foi o primeiro que se deixou encaminhar, nesse caminho, pela pressão dos próprios fenômenos. Pois é somente depois de fixar a problemática da TEMPORANEIDADE que se pode lançar alguma luz sobre a obscuridade da doutrina do esquematismo. Seguindo esse caminho é que se poderá mostrar por que, em suas dimensões próprias e em sua função ontológica central, esse âmbito teve de manter-se fechado para Kant. Ele próprio sabia que estava se aventurando num âmbito obscuro: “Esse esquematismo de nosso entendimento, no tocante aos fenômenos e à sua forma, é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, cujos mecanismos verdadeiros dificilmente poderíamos arrancar à natureza para colocá-los a descoberto diante de nossos olhos”. Para que a expressão “ser” venha a adquirir um sentido comprovável, deve-se esclarecer, em princípio e explicitamente, diante de que Kant, por assim dizer, recua. Em última instância, são justamente os fenômenos da “TEMPORANEIDADE”, a serem explicitados na presente analítica, que constituem os juízos mais secretos da “razão universal”, cuja analítica foi apresentada por Kant como o “ofício dos filósofos”. STMSC: §6
Seguindo a tarefa da destruição, orientada pela problemática da TEMPORANEIDADE, o presente tratado busca interpretar o capítulo do esquematismo e, a partir daí, a doutrina kantiana do tempo. Também se haverá de mostrar por que Kant fracassou na tentativa de adentrar a problemática da TEMPORANEIDADE. Duas coisas o impediram: em primeiro lugar, a falta da questão do ser e, em íntima conexão com isso, a falta de uma ontologia explícita da presença [Dasein] ou, em terminologia kantiana, a falta de uma analítica prévia das estruturas que integram a subjetividade do sujeito. Ao invés disso, Kant aceita dogmaticamente a posição de Descartes, apesar de todos os progressos essenciais que fez. Ademais, a análise do tempo, embora tenha reconduzido o fenômeno para o sujeito, permanece orientada pela concepção vulgar do tempo, herdada da tradição. É o que, em última instância, impede Kant de elaborar o fenômeno de “uma determinação transcendental do tempo”, em sua própria estrutura e função. Devido a essa dupla influência da tradição, a conexão decisiva entre o “tempo” e o “eu penso” permaneceu envolta na mais completa escuridão, não chegando sequer uma vez a ser problematizada. STMSC: §6
Todo conhecedor da Idade Média percebe que Descartes “depende” da escolástica medieval. Essa descoberta, porém, não diz nada do ponto de vista filosófico, enquanto permanecer obscura a influência fundamental exercida pela ontologia medieval na determinação ou na não-determinação posterior da res cogitans. Só será possível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido e os limites da antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão do ser. Em outras palavras, a destruição se vê colocada diante da tarefa de interpretar o solo da antiga ontologia à luz da problemática da TEMPORANEIDADE. Torna-se, assim, evidente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo “mundo” e pela “natureza” em seu sentido mais amplo, retirando de fato a compreensão do ser a partir do “tempo”. A determinação do sentido do ser como parousia e ousia, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa “vigência”, representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em seu ser como “vigência”, isto é, a partir de determinado modo do tempo, do “atualmente presente”. STMSC: §6
Enquanto tema fundamental da filosofia, ser não é o gênero dos entes, embora diga respeito a todo e qualquer ente. A sua “universalidade” deve ser procurada ainda mais alto. O ser e a estrutura de ser acham-se acima de qualquer ente e de toda determinação ôntica possível de um ente. O ser é o transcendens pura e simplesmente {CH: transcendens, seguramente não – apesar de todo eco metafísico – nem o koinon escolástico e greco-platônico, mas transcendência como ekstático – temporalidade – TEMPORANEIDADE; mas horizonte. O ser cobriu o ente “com e no pensamento. A transcendência do ser da presença [Dasein] é privilegiada porque nela reside a possibilidade e a necessidade da individuação mais radical. Toda e qualquer abertura de ser enquanto transcendens é conhecimento transcendental. A verdade fenomenológica (abertura de ser) é veritas transcendentalis. STMSC: §7
A elaboração da questão do ser divide-se, pois, em duas tarefas; a cada uma corresponde a divisão do tratado em duas partes: Primeira parte: A interpretação da presença [Dasein] pela temporalidade e a explicação do tempo como horizonte transcendental da questão do ser. Segunda parte: Linhas fundamentais de uma destruição fenomenológica da história da ontologia, seguindo-se o fio condutor da problemática da TEMPORANEIDADE. STMSC: §8