A análise 1 da consciência (Gewissen) parte de uma constatação indiferente em relação a este fenômeno (Phänomen): que a consciência nos dá de algum modo (Weise) a entender alguma coisa. A consciência abre. Ela pertence, portanto, ao domínio dos fenômenos existenciais que constituem o ser do Aí como abertura 2, cujas estruturas mais gerais, a disposição afectiva, o compreender, o fala e a decadência (Befindlichkeit, Verstehen, Rede und Verfallen), já foram analisadas. Se situamos a consciência neste contexto fenomenal (phänomenalen Zusammenhang), não é porque queiramos aplicar esquematicamente as estruturas alcançadas a um “caso” especial da abertura do Dasein (Erschließung des Daseins). Pelo contrário, a interpretação (Interpretation) da consciência não só alargará a análise da abertura do Aí (Erschlossenheit des Da) que fizemos, mas apreendê-la-á mais originariamente tendo em vista o próprio modo de ser do Dasein (eigentliche Sein des Daseins).
Em virtude da abertura, o ser a que chamamos Dasein tem a possibilidade (Möglichkeit) de ser o seu Aí. Com o seu mundo, ele está presente a si mesmo e está imediata e regularmente presente a si mesmo sob a forma de ter aberto o seu poder-ser (Seinkönnen) a partir do “mundo” de que se ocupa. O poder-ser que é a existência do Dasein sempre já se entregou a certas possibilidades. E isto porque o Dasein é um ente lançado, e a sua condição lançada (Geworfenheit) abre-se, com maior ou menor clareza e profundidade, por meio da têmpera psíquica (Gestimmtsein). À disposição afectiva (Befindlichkeit) (estado de ânimo, Stimmung) pertence cooriginariamente (gleichursprünglich) a compreensão (Verstehen). Através da compreensão, o Dasein “sabe” o que se passa consigo mesmo, e sabe-o na medida em que se projetou (entworfen) em possibilidades de si mesmo, ou — assumindo-se a si mesmo no impessoal — permitiu que estas lhe fossem apresentadas pelo estado interpretativo público (öffentliche Ausgelegtheit). O que torna esta apresentação existencialmente possível, porém, é o fato de o Dasein, na medida em que é um co-ser compreensivo (verstehendes Mitsein), poder escutar (hören) [crê sabê-lo] os outros. Perdido no público do impessoal e no seu falar, o Dasein, ao escutar o impessoalmente-si-mesmo (Man-selbst), não dá ouvidos a seu próprio si mesmo (eigene Selbst). Para que o Dasein possa ser resgatado desta perda de escuta de si mesmo, e para que o possa fazer por si mesmo, é necessário que possa primeiro encontrar-se a si mesmo: encontrar ao si que não foi ouvido precisamente na escuta (Hinhören) do impessoal. Esta escuta do impessoal tem de ser quebrada, ou seja, tem de receber do próprio Dasein a possibilidade de uma escuta que a interrompa. Para que esta rutura seja possível, é necessária uma interpelação de carácter imediato (unvermittelten Angerufenwerden). Esta chamada (Ruf) romperá a escuta do impessoal em que o Dasein se desconsidera a si mesmo se conseguir despertar, em virtude da sua própria interpelação, uma escuta com características inteiramente contrárias às da escuta perdida no impessoal. Se esta última está atordoada na “azáfama” (Lärm) e na equivocidade do sempre “novo” falatório quotidiano, o chamamento tem de chamar silenciosa e inequivocamente, sem dar lugar à curiosidade. Aquilo que dá a entender chamando desta forma é a consciência.
No chamamento da consciência, vemos um modo de discurso (Modus der Rede). O discurso articula a compreensibilidade (Verständlichkeit). A determinação da consciência como chamamento não é, de modo algum, uma mera “imagem” (Bild), como o é, por exemplo, a imagem kantiana do tribunal da consciência. Além disso, não devemos esquecer o fato de que nem o discurso, nem portanto o apelo, implicam essencialmente a locução verbal. Todo o exprimir e “proclamar” pressupõe o discurso (Jedes Aussprechen und »Ausrufen« setzt schon Rede voraus) 3. Quando a interpretação quotidiana fala de uma “voz” da consciência, não se refere, obviamente, a uma locução verbal, que de fato não ocorre 4, mas a “voz” é entendida como um dar-a-compreender de algo (Zu–verstehen-geben). Nesta tendência de abertura do chamamento há um momento de choque (Stoßes), de súbita sacudidela (Aufrüttelns) 5. É um chamamento de longe para longe (Gerufen wird aus der Ferne in die Ferne). O chamamento chegará àquele que quer ser trazido de volta 6.
Mas com esta caracterização da consciência apenas se esboçou o horizonte fenomenal para a análise da sua estrutura existencial. O fenômeno não é comparado a um chamamento, mas é entendido como discurso a partir da abertura constitutiva do Dasein. Esta consideração impede-nos, desde logo, de tomar o caminho que imediatamente se nos oferece para uma interpretação da consciência: remetê-la para uma das faculdades da alma — entendimento, vontade ou sentimento (Verstand, Wille oder Gefühl) — ou explicá-la como o produto da combinação de todas elas. Perante um fenômeno como o da consciência 7, é evidente a insuficiência ontológica e antropológica de uma classificação das faculdades da alma ou dos atos pessoais que paire no vazio.
- Há várias coisas que estão necessariamente misturadas aqui: 1. o chamamento daquilo a que chamamos consciência 2. o ser chamado 3. a experiência desse ser chamado 4. a interpretação habitual dada pela tradição e 5. a maneira de lidar com isso.[
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- Cf. § § 28 ss.[
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- Cf. § 34.[
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- que não ouvismo sensivelmente.[
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- mas também o mento da continuidade.[
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- o que se alijou de seu próprio si mesmo.[
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- vale dizer, da sua origem no ser-si-mesmo; mas não é até aqui tão somente uma afirmação?[
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