Sloterdijk (2018) – domesticação do humano

tradução do inglês

A descoberta antropológica de que os seres humanos podem e devem adotar relações consigo mesmos e com aqueles como eles, que são descritas por verbos como controlar, cultivar e tratar, ocorreu na evolução ocidental das ideias em duas ocasiões, em contextos bastante singulares, sempre uma virada decisiva na história intelectual. A primeira manifestação desse complexo de ideias está associada ao nome de Platão. De uma maneira nova, o fundador da Academia Ateniense tentou conceber com precisão a prática tradicional de educador e estadista, com referência a um tipo de diferença antropológica que abriu uma fissura na essência do ser humano. Como os seres humanos em culturas avançadas não podem ser por natureza o que todavia são por natureza, eles devem ser educados, como indivíduos, e obrigados a se submeter à governança racional, como cidadãos. A educação e a administração política são dois campos de práxis nos quais a incapacidade dos seres humanos de se preencher sem orientação de outros (colocando-a em termos antigos: obedecer a própria natureza deles) se manifesta de maneira particularmente perceptível. Na definição mais estreita das funções pedagógicas e diretivas do estado, Platão busca imagens e analogias retiradas da esfera pastoral. O diálogo O Político é a principal fonte da teoria pastoral da política de Platão, em sua forma totalmente desenvolvida. Aqui encontramos uma frase famosa e ainda um tanto escandalosa, segundo a qual a arte do administrador político é uma “arte de pastorear” os bípedes sem penas e sem chifres da criação sem mistura, juntamente com a adição reveladora de que — uma vez que tiranias nunca são uma opção para gregos em geral e filósofos em particular — a política preocupa-se com a supervisão voluntária de um rebanho de criaturas que vivem juntas por sua própria vontade. Uma característica do racionalismo grego é a crença de que os seres humanos só podem ser dissuadidos de inclinações irracionais e induzidos a entrar na casa da razão através de uma ascese específica — isto é, um sistema de práticas em andamento. É desnecessário apontar a influência da antropologia pastoral de Platão nesse sentido. Graças a uma série de traduções e reformulações, deixou uma profunda impressão no imaginário ocidental, particularmente na maneira como foi misturado com a figura do bom pastor no Novo Testamento. Por quase 2.000 anos, a lógica comunitária cristã tem sido baseada nessas imagens platônicas de rebanhos e seus pastores.

A segunda descoberta de que é necessário treinar seres humanos para ser seres humanos ocorre em circunstâncias radicalmente diferentes no século XIX, depois que Darwin naturalizou a história das espécies e colocou o ser humano no final de uma linha evolutiva que mostrava os chamados Homo sapiens como sendo primo dos hominídeos. Desde então, a tradicional questão pedagógica de como os seres humanos devem ser transformados em seres humanos foi ofuscada pela biologia evolutiva. Em vez da tensão entre irracional e razão, agora temos o antagonismo entre selvageria e civilização ou, em termos mitológicos, poderes dionisíaco e apolíneo. Somente em tal situação a conversa sobre domesticação pode assumir um tom sério. Agora, a formação dos seres humanos não deve mais ser meramente concebida metaforicamente, como entrada na casa da razão, mas deve literalmente ser concebida como deixando para trás a selvageria animal para a domesticidade civilizada. Isso ocasiona a perturbadora intervenção de Nietzsche: ele foi um dos primeiros a reconhecer que o processo de geração, no sentido literal, sempre implica também instâncias de auto-reprodução e, na sua opinião, geralmente como uma espécie de auto-abnegação progressiva no encalço ao ideal de preconceito sacerdotal e anti-aristocrático. Daí o verso provocativo da música “Da Virtude Faça-a Pequena”, na Terceira Parte de Assim Falou Zaratustra:

No fundo, esses simples querem uma coisa simples: que ninguém os prejudique. Para eles, a virtude é o que torna modesto e manso; foi assim que eles transformaram o lobo em um cachorro e a própria humanidade no animal de estimação favorito da humanidade.

Basta observar que, embora as observações de Nietzsche continuem sendo bem compreendidas, suas preocupações não são mais nossas no momento. Embora o autor de Assim falou Zaratustra tenha trabalhado com o problema de como o brilho suprimido da selvageria poderia ser salvo do triunfo total da civilização castradora, a questão para nós é: como conseguir impedir a louca corrida da civilização em seu ápice.

Christopher Turner

[SLOTERDIJK, Peter. What happened in the 20th century? English edition ed. Cambridge, UK ; Medford, MA: Polity Press, 2018]

  1. Tr. – Plato, Statesman, trans. Robin Waterfield (Cambridge: Cambridge University Press, 1995) 32 (276e).[↩]
  2. Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, trans. Adrian Del Caro (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), 135.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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