Sloterdijk (2016:43-44) – viver em esferas

Toda vez que o Deus judaico e o homem prototípico voltam um para o outro a face de contato de seu ser, eles compõem juntos uma esfera comum dotada de um espaço interior. O que aqui se denomina esfera seria, pois, numa concepção primeira e provisória, uma bola constituída de duas metades, polarizada e diferenciada desde o início, embora articulada internamente, subjetiva e viva — um espaço biunitário comum de vida e experiência. Assim, por meio da formação de esferas, aquilo que a tradição denomina espírito distende-se originalmente no espaço. Segundo sua forma fundamental, a esfera aparece como uma bolha gêmea, um espaço espiritual e vital de forma elipsoide com ao menos dois habitantes que, como dois polos, se defrontam e se ligam um ao outro. Viver em esferas significa, portanto, habitar o meio impalpável comum. A intenção destes três livros é proceder à prova de que o estar-em-esferas constitui a condição fundamental para os seres humanos, embora se trate de uma condição que desde o início está pressionada pelo mundo não interior e que deve constantemente se afirmar, se recompor e se intensificar contra as provocações que vêm de fora. Nesse sentido, esferas são sempre, além disso, construções morfoimunológicas. Só em estruturas imunes formadoras de espaço interior podem os homens levar adiante o processo de suas gerações e impulsionar suas individuações. Mais ainda: os homens jamais viveram de forma imediata diante da assim chamada natureza, e, acima de tudo, suas culturas jamais pisaram o solo disso que se chama os fatos brutos; eles já existem exclusivamente e desde sempre em um espaço insuflado, partilhado, aberto e recomposto. São criaturas viventes cujo propósito é ser criaturas pairantes, se por pairar se entende depender de afinidades compartilhadas e de pressuposições comuns. Por conseguinte, os homens são, fundamental e exclusivamente, as criaturas de seu interior e os produtos de seu trabalho sobre a forma da imanência que a eles inseparavelmente pertence. Eles medram apenas na estufa de sua atmosfera autógena.

(SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Bolhas. Tr. José Oscar de Almeida Marques. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2016)