A construção do autêntico desemboca, enfim, no teorema do “ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode)”, pretexto de indignação barata para os críticos de Heidegger: a filosofia burguesa já não consegue reunir suas forças senão para pensamentos mórbidos e fúnebres! Fantasias de quarta-feira de Cinzas nas mentes parasitárias! Tomemos, dessa crítica, o elemento de verdade. Ela afirma que na obra de Heidegger se reflete, a despeito do próprio autor, o momento histórico e social no qual essa obra foi composta e, mesmo que ela se afirme enfaticamente como uma análise ontológica, fornece involuntariamente uma teoria da época presente. Na medida em que essa teoria é involuntária, o crítico tem o direito de designar nela um aspecto não livre, a saber, cego, sem se desincumbir do dever de render (278) homenagem ao seu lado iluminado. Nenhum pensamento pertence de modo tão íntimo ao seu tempo quanto o do ser-para-a-morte: é a palavra-chave filosófica na época das guerras mundiais imperialistas e fascistas. A teoria de Heidegger se situa a meio-caminho, na virada da primeira para a Segunda Guerra Mundial, da primeira para a segunda modernização da morte em massa. Ela se situa a meio-caminho entre a primeira tripla constelação da indústria da destruição: Flandres, Tannenberg, Verdun, e a segunda: Stalingrado, Auschwitz, Hiroshima. Sem indústria de morte, nada de indústria do entretenimento. Se compreendemos Ser e tempo não “apenas” como uma ontologia existencial, mas igualmente como uma codificada psicologia social da modernidade, abrem-se perspectivas mais amplas de consideração de relações de estrutura. Heidegger compreendeu a relação entre a “inautenticidade” moderna da existência e a fabricação moderna da morte de uma maneira que só se abre para um contemporâneo das guerras mundiais industriais. Se suspendermos por um instante o interdito que condena a obra de Heidegger, em virtude da suspeita de fascismo que recai sobre ela, veremos revelarem-se potencialidades críticas explosivas na fórmula do “ser-para-a-morte”. Compreendemos, então, que a teoria heideggeriana da morte esconde a mais aguda crítica que o século XX já formulou em relação ao século XIX. Pois o século XIX concentrara suas melhores energias teóricas na tentativa de tornar pensável, através de grandes teorias realistas, a morte dos outros.1 Os grandes projetos evolucionistas extirparam o mal do mundo na medida em que ele afeta os outros, para transportá-lo para estados superiores de épocas ulteriores concretizadas: há aqui equivalências formais entre a ideia de evolução, o conceito de revolução, o conceito de seleção, o conceito de luta pela vida e de sobrevivência dos mais aptos, a ideia de progresso e o mito da raça. Com todas essas concepções, busca-se uma ótica que objetiva o declínio dos outros. Com a teoria heideggeriana da morte, o pensamento do século XX vira as costas a esses cinismos híbridos e teoricamente neutralizados do século XIX. Visto de fora, a única coisa que muda é o pronome: “morre-se” transforma-se em “eu morro”. No ser consciente da morte, a existência de Heidegger se revolta contra o “constante apaziguamento sobre a morte”, do qual depende absolutamente uma sociedade hiperdestrutiva. O militarismo total da guerra industrial conquista, à força, nas condições do dia a dia, um recalcamento (279) narcótico da morte, o mais total possível — ou um descarregamento da nossa morte sobre os outros: eis a lei do entretenimento moderno. Tal o estado do mundo que diriamos que ele sussurra aos homens, se eles estiverem dispostos a ouvir: vossa destruição é apenas uma questão de tempo, e o tempo de que precisa a destruição para vos acometer é o tempo do vosso entretenimento. Pois a destruição vindoura supõe vosso entretenimento, e que vós não estejais resolutos por viver. O impessoal entretido é o modo de nosso existir pelo qual nos encontramos nós mesmos em relações genéricas com a morte e cooperamos com a indústria da morte. Eu gostaria de afirmar que Heidegger tem em suas mãos o começo do fio para uma filosofia do rearmamento, pois armar é submeter-se à lei do impessoal. Eis uma das frases mais impressionantes de Ser e tempo: “o impessoal interdita o nascimento da coragem da angústia diante da morte” (p. 254). Aquele que se arma substitui a “coragem da angústia diante de sua própria morte” por um empreendimento militar. O militarismo é a maior garantia de que não é necessário que eu morra minha “própria morte”; ele me promete cooperação em minha tentativa de recalcar o “eu morro” para ganhar, em troca, a morte do impessoal, a morte in absentia, uma morte em inautenticidade e narcose políticas. Rearma-se, entretém-se, morre-se.
Descubro no “eu morro” heideggeriano o núcleo de cristalização em torno do qual pode se desenvolver uma filosofia real do kynismos renovado. Nenhum fim do mundo deve se distanciar desse a priori kynikos: “Eu morro” a ponto de nossa morte se tornar meio para um fim. Pois é justamente o fato de nossa vida ser privada de sentido, um fato em torno do qual se produz tanta tagarelice niilista, que justifica seu alto preço. À privação de sentido não se associam apenas o desespero e o pesadelo de um Dasein esmagado, mas igualmente uma festa da vida, criadora de sentido, uma poderosa consciência no aqui e agora, uma oceânica celebração.
Que no próprio Heidegger tudo seja mais sombrio, e que seu roteiro existencial se desenrole entre o céu plúmbeo da cotidianidade e os fulgurantes raios da angústia e das cores da morte: tudo isso é conhecido e justifica o nimbo melancólico de sua obra. Mas mesmo no pathos do ser-para-a-morte podemos desvelar um vestígio de substância kynike, porque se trata de um pathos da ascese, e nesse pathos o kynismos dos fins pode, numa linguagem do século XX, se fazer ouvir. O que a sociedade em sua agitação nos apresenta como fins nos amarra desde sempre à existência (Dasein) inautêntica. A agitação do mundo faz de tudo para recalcar a morte, enquanto um (280) existir “autêntico” se inflama na medida em que, desperto, por meio dele reconheço a quantas ando no mundo, olhos nos olhos com a angústia diante da morte; esta se manifesta se eu realizo radicalmente e por antecipação o pensamento de que é a mim que minha morte aguarda no fim do meu tempo. Heidegger deduz daí um estrangeirismo (Unheimlichkeit) originário do existente humano (Dasein); é possível que o mundo jamais venha a se tornar para os homens um lar seguro e produtor de asseguramento. Porque o existente humano (Dasein) é originariamente estrangeiro, o (281) “homem expatriado” (como um espectro, sobretudo na filosofia pós Segunda Guerra Mundial, ele atravessava a terra devastada) sente uma necessidade de se recolher em moradas e pátrias artificiais, bem como de escapar à angústia refugiando-se em hábitos e habitações.