Tudo parece estar autenticamente compreendido, apreendido, dito, mas no fundo não está, ou entáo parece não estar, e no fundo está. (Sein und Zeit, p. 173)
Parece que a linguagem ainda é capaz de distinguir, com esforço, entre o que simplesmente “assim parece” e o que verdadeiramente “assim é”. Mas a experiência mostra que tudo se embaralha. Tudo se parece com… Esse “com” é o que atormenta o filósofo. Para o positivista, tudo seria como é; nenhuma diferença entre essência e aparência — isso não passaria do velho espectro metafísico que se quer eliminar. Mas Heidegger insiste numa diferença e permanece firmemente atado ao Outro, que não apenas “parece”, mas tem o essencial, o autêntico, o próprio ao seu lado. Em Heidegger, o resíduo metafísico e sua resistência ao positivismo puro se revelam na vontade de autenticidade. Há ainda uma “outra dimensão”, (275) mesmo que ela se furte à demonstração, porque ela não pertence ao grupo das “coisas” demonstráveis. De imediato, o Outro se deixa apenas afirmar, ao mesmo tempo que fica assegurado que ele se assemelha exatamente ao Um; para um olhar exterior, o “autêntico” não se destaca de modo algum do “inautêntico”.
Nessa estranha figura de pensamento pulsa a mais elevada presença de espírito dos anos 1920. Ela postula a diferença que é preciso “estabelecer”, sem poder garanti-la de algum modo. Enquanto a ambiguidade, como fato fundamental da existência, é pelo menos ainda afirmada, a possibilidade da “outra dimensão” permanece formalmente salvaguardada. Nesse sentido, o movimento do pensamento de Heidegger parece se esgotar: trata-se de uma salvação formal do autêntico, que pode se parecer exatamente com o “inautêntico”. Ora, simples afirmações não bastam. Em última análise, o tão evocado existente humano (Dasein) autêntico precisa de algo de “próprio a ele”1 a fim de ainda se distinguir de algum modo. Como encontrá-lo, eis a questão que ainda permanece. Para tornar a coisa completamente apaixonante, Heidegger sublinha ainda por cima que o “ser decaído” do existente humano (Dasein) no mundo enquanto impessoal não é a queda a partir de um “estado primitivo” originário e mais elevado, mas sim que ele decai desde sempre e “sempre já”. Com uma ironia austera, Heidegger observa que o impessoal sente-se confortável com a crença de que leva uma vida autêntica e plena na medida em que se lança sem reservas à agitação do mundo. O filósofo, ao contrário, identifica precisamente aí a decadência. E preciso confessar que o autor de Ser e tempo sabe submeter à tortura, e, sejamos honestos, à tortura de uma “banalidade das profundezas” “manifesta”, o leitor que impacientemente espera pelo “autêntico”. Ele nos conduz, de um modo fantasticamente explícito, pelos labirintos de uma negatividade positiva, fala do impessoal e de seu falatório, de sua curiosidade, de sua decadência na agitação, numa palavra, da “alienação”, mas ao mesmo tempo assegura que tudo isso é dito sem a mais ínfima “crítica moral”. Ao contrário, segundo ele, tudo isso é uma análise de “intenção ontológica”, e aquele que fala do impessoal não descreve absolutamente um Si naufragado, mas uma qualidade do existente humano (Dasein) que tem a mesma origem do ser-si-mesmo autêntico. Assim é desde o começo, e o termo “alienação”, surpreendentemente não remete a um ser próprio original, mais elevado e mais essencial, sem “estranhamento”! A alienação, assim lemos, não quer dizer que o existente humano (Dasein) foi arrancado de “si mesmo”, mas que a inautenticidade dessa alienação é, desde o começo, seu mais poderoso e original modo de ser. Nele, nada há que pudéssemos designar num sentido valorativo como mau, negativo ou falso. A alienação é simplesmente o modo de ser do impessoal.
[SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Tr. Casanova, Soethe, Costa Rego, Mendonça Cardozo & Hiendlmayer. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012]- Mefistófeles: “Se eu não tivesse reservado para mim a chama, eu nada teria de próprio a mim.”[↩]