No verso de abertura da Ilíada, começo da tradição europeia, emerge a palavra “ira” (Zorn); de uma maneira fatal e festiva, como um apelo que não admite nenhuma oposição. Tal como condiz a um objeto frasal plenamente constituído, esse substantivo encontra-se no acusativo: “A ira canta, ó deusa, de Aquiles, filho de Peleu.” O fato de a palavra aparecer em primeiro lugar expressa de maneira audível um páthos elevado. Que tipo de relação com a ira se sugere aos ouvintes no mágico prelúdio da canção heroica? A ira, com a qual tudo começou no antigo Ocidente — de que maneira o poeta quer lhe dar voz? Será que ele a descreverá como uma força violenta que enreda homens pacíficos em acontecimentos tenebrosos? Será que devemos domar, refrear, reprimir este afeto, de todos o mais descomunal 1 e o mais humano? Será que sempre fugimos dele rapidamente, todas as vezes nas quais ele se manifesta nos outros e se faz sentir em nós mesmos? Será que devemos sacrificá-lo incessantemente à compreensão neutralizada, a uma melhor compreensão? Como já podemos notar, estas são questões contemporâneas que vão muito além de nosso objeto — se é que este objeto se chama a ira de Aquiles. O mundo antigo tinha aberto seus próprios caminhos em relação à ira, caminhos que não podem mais ser os caminhos dos modernos. Enquanto estes apelam para os terapeutas ou digitam o número da polícia, os sábios de outrora dirigiam-se ao mundo superior. A fim de deixar que ressoasse a primeira palavra da Europa, a deusa é conclamada por Homero de acordo com um antigo hábito dos rapsodos e seguindo o raciocínio de que o melhor para aquele que se propõe algo imodesto é começar com bastante modéstia. Não sou eu, Homero, que posso assegurar o êxito de meu canto. Cantar significa desde tempos imemoriais abrir a boca para que forças superiores possam se anunciar. Se minha apresentação obtiver sucesso e autoridade, as musas é que terão sido responsáveis e, para além das musas — quem sabe — o deus, a própria deusa. Se o canto se dissipa sem ser ouvido, é porque os poderes mais elevados não estavam interessados por ele. No caso de Homero, o julgamento divino foi exposto de maneira clara. No começo estava a palavra “ira” e a palavra foi coroada de êxito.
[Excerto de SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo. Ensaio político-psicológico. Tr. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 11]- O termo alemão unheimlich possui um significado bastante expressivo, que se perde quase por completo cm suas traduções mais correntes: “sinistro”, “medonho”, “estranho”. Seguindo seu sentido etimológico, unheimlich designa literalmente aquilo que não pertence à nossa terra natal (Heim), aquilo diante do qual não nos sentimos em casa. Por isso, o termo também abarca de maneira derivada o significado de algo desconhecido, lúgubre e inquietante, assim como de algo ingente, gigantesco. Para preservar a riqueza deste termo em sua dimensão mais original escolhemos a palavra “descomunal”, porque ela também descreve a experiência de um confronto com algo fora do comum e abarca alguns dos matizes significativos do original.[
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