simplesmente dado

Vorhandensein, Vorhandenheit, vorhanden

Como ser constitui o questionado e ser diz sempre ser de um ente, o que resulta como interrogado na questão do ser é o próprio ente. Este é como que interrogado em seu ser. Mas para se poder apreender sem falsificações os caracteres de seu ser, o ente já deve se ter feito acessível antes, tal como é em si mesmo. Quanto ao interrogado, a questão de ser exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que (7) falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no SER SIMPLESMENTE DADO (Vorhandenheit), no teor e recurso, no valor e validade, no existir {CH: ainda é o conceito corrente e nenhum outro}, no “dá-se”. Em qual dos entes deve-se {CH: duas questões distintas se justapõem aqui; isso dá motivo para um mal-entendido, sobretudo com referência ao papel da presença (Dasein)} ler o sentido de ser? De que ente deve partir a abertura para o ser? O ponto de partida é arbitrário, ou será que um determinado ente possui o primado na elaboração da questão do ser? Qual é este ente exemplar {CH: perigo de mal-entendido. Exemplar é a presença (Dasein) porque ela é o jogo de apreensão que, em sua essência como presença (Dasein) (resguardando a verdade do ser), o ser como tal joga e articula – porque o ser como tal põe no jogo de sua ressonância.} e em que sentido possui ele um primado? STMSC: §2

1. A “essência” deste ente está em ter de ser {CH: em “ter” de ser, determinação!}. A quididade (essentia) deste ente, na medida em que dela se possa falar, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem e nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que SER SIMPLESMENTE DADO, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de presença (Dasein). Evita-se uma confusão usando a expressão interpretativa SER SIMPLESMENTE DADO para designar existentia e reservando-se existência como determinação ontológica exclusiva da presença (Dasein). STMSC: §9

As origens relevantes para a antropologia tradicional, a definição grega e o paradigma teológico atestam que, ao se determinar a essência deste ente “homem”, a questão de seu ser foi esquecida. Ao invés de questioná-lo, concebeu-se o ser do homem como “evidência”, no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO junto às demais coisas criadas. Essas duas vertentes se entrelaçam na antropologia moderna com o ponto de partida metodológico da res cogitans, a consciência (Bewusstsein), o conjunto das vivências. Como, no entanto, as cogitationes permanecem ontologicamente indeterminadas, sendo tomadas implicitamente como algo “evidente” e “dado”, cujo “ser” não suscita nenhuma questão, a problemática antropológica fica indeterminada quanto a seus fundamentos ontológicos decisivos. STMSC: §10

O que diz ser-em? De saída, completamos a expressão, dizendo: ser “em um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de…”. Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está num outro, como a água está no copo, a roupa no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca de ser de dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante a seu lugar neste mesmo espaço. Água e copo, roupa e armário estão igualmente “dentro” do espaço “em” um lugar. Esta relação de ser pode ampliar-se, por exemplo: o banco na sala de aula, a sala na universidade, a universidade na cidade e assim por diante até: o banco “dentro do espaço cósmico”. Esses entes, que podem ser determinados como estando um “dentro” do outro, têm o mesmo modo de ser do que é simplesmente dado, como coisa que ocorre “dentro” do mundo. Ser simplesmente dado “dentro” do que está dado, o SER SIMPLESMENTE DADO junto com algo dotado do mesmo modo de ser, no sentido de uma determinada relação de lugar, são caracteres ontológicos que chamamos de categoriais. Tais caracteres pertencem ao ente não dotado do modo de ser da presença (Dasein). STMSC: §12

O ser-em, ao contrário, significa uma constituição de ser da presença (Dasein) e é um existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar no SER SIMPLESMENTE DADO de uma coisa corpórea (o corpo vivo do humano) “dentro” de um ente simplesmente dado. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, “dentro de outra” porque, em sua origem, o “em” não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie ; “em” deriva-se de innan-, morar, habitar, deter-se; “an” significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão “sou” conecta-se a “junto”; “eu sou” diz, por sua vez: eu moro, detenho-me junto… ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. Como infinitivo de “eu sou”, isto é, como existencial, ser {CH: ser é também infinitivo de “é”: o ente é} significa morar junto a, ser familiar com. O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença (Dasein) {CH: mas não do ser em geral e nem mesmo do próprio ser – pura e simplesmente} que possui a constituição essencial de ser-no-mundo. STMSC: §12

Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença (Dasein)” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença (Dasein), já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu SER SIMPLESMENTE DADO. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença (Dasein), se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença (Dasein)” como um dado e somente como simples dado com um modo de “SER SIMPLESMENTE DADO”, próprio da presença (Dasein). Pois este SER SIMPLESMENTE DADO não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença (Dasein). Ele só se torna acessível em sua compreensão prévia. A presença (Dasein) compreende o seu ser mais próprio no sentido de um certo “SER SIMPLESMENTE DADO fatual”. Na verdade, a “fatualidade” do fato da própria presença (Dasein) é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença (Dasein) em que, como tal, cada presença (Dasein) sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença (Dasein), a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSC: §12

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença (Dasein) não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença (Dasein) tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no ser-no-mundo em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do SER SIMPLESMENTE DADO de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença (Dasein) é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença (Dasein). É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço. STMSC: §12

Na própria presença (Dasein) e para ela, esta constituição de ser é, desde sempre e de alguma maneira, reconhecida. No entanto, para ser também conhecida, o conhecer explícito nessa tarefa toma a si mesmo, enquanto conhecimento do mundo, como relação exemplar entre “alma” e mundo. Por isso, conhecer o mundo (noein), dizer e discutir o “mundo” (logos) funcionam como modo primário de ser-no-mundo, embora este último não seja concebido como tal. Porque, no entanto, esta estrutura de ser permanece ontologicamente inacessível, ela é experimentada onticamente como “relação” de um ente (mundo) com outro ente (alma). Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como SER SIMPLESMENTE DADO. Embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o ser-no-mundo se torna invisível por via de uma interpretação ontologicamente inadequada. Agora só se conhece a constituição da presença (Dasein) e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnância de uma interpretação inadequada. Desse modo, esta interpretação torna-se o ponto de partida “evidente” para os problemas da epistemologia ou “metafísica do conhecimento”. Pois, o que é mais evidente do que um “sujeito” referir-se a um “objeto” e vice-versa? Esta correlação de sujeito-objeto é um pressuposto necessário. Mas tudo isso, embora inatacável em sua facticidade, ou melhor, justamente por isso, permanece um pressuposto fatal, quando se deixa obscura a sua necessidade e, sobretudo, o seu sentido ontológico. STMSC: §12

Natureza aqui, porém, não deve ser compreendida como algo simplesmente dado e nem tampouco como poder da natureza. A mata é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é represa, o vento é vento “nas velas”. Com a descoberta do “mundo circundante”, a “natureza” assim descoberta vem ao encontro. Pode-se prescindir de seu modo de ser à mão e determiná-la e descobri-la apenas em seu modo de SER SIMPLESMENTE DADO. Nesse modo de descobrir, porém, a natureza se vela enquanto aquilo que “tece e acontece”, que se precipita sobre nós, que nos fascina com sua paisagem. As plantas do botânico não são flores no campo, o “jorrar” de um rio, constatado geograficamente, não é “fonte no solo”. STMSC: §15

O modo de ser desse ente é a manualidade. Não se pode compreendê-la, porém, como mero caráter de apreensão {CH: mas na verdade somente caráter de encontro}, como se tais “aspectos” fossem impostos numa fala ao “ente” que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Uma interpretação assim orientada desconsidera que, para tanto, o ente deveria ser previamente compreendido como algo pura e simplesmente dado e que, em decorrência, um modo de lidar com o “mundo” que o descobre e dele se apropria passa a ter primado e autoridade. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento que demonstramos como modo fundado do ser-no-mundo. Esse ser-no-mundo só chega a explicitar o que é simplesmente dado, através do que está à mão na ocupação. Manualidade é a determinação categorial dos entes tais como são “em si”. Todavia, a manualidade apenas se dá com base em algo simplesmente dado. Admitindo-se essa tese, seguir-se-ia, então, que a manualidade está fundada ontologicamente no SER SIMPLESMENTE DADO? STMSC: §15

Entretanto, por mais que, no desenvolvimento da interpretação ontológica, a manualidade se resguarde como modo de ser dos entes intramundanos primeiro descobertos e por mais que a sua originariedade frente ao SER SIMPLESMENTE DADO possa se deixar e fazer comprovar, não será que com o que se explicou até agora conquistamos um mínimo para o entendimento ontológico do fenômeno do mundo? Na interpretação desse ente intramundano, o mundo já é sempre “pressuposto”. O “mundo”, porém, não resulta da reunião desses entes como uma soma. Será, pois, que do ser desse ente se descortina um caminho para a demonstração do fenômeno do mundo? STMSC: §15

À cotidianidade de ser-no-mundo pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente à mão pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui à mão. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. A surpresa proporciona o instrumento num determinado modo de não estar à mão. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro SER SIMPLESMENTE DADO anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse SER SIMPLESMENTE DADO do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSC: §16

O modo de lidar da ocupação, no entanto, não se depara apenas com o que não pode ser empregado em meio ao que já está à mão. Depara-se com o que falta, com o que não apenas não pode ser “manuseado”, mas com o que não está, de modo algum, “à mão”. Esse tipo de falta, como encontro de algo que não está à mão, põe de novo a descoberto o manual, embora num certo SER SIMPLESMENTE DADO. Ao constatar o que não está à mão, o manual assume o modo da importunidade. Quanto maior for a falta do necessário, quanto mais propriamente ele se der ao encontro não estando à mão, tanto mais importuno torna-se o manual, e isso de tal maneira que parece perder o caráter de manualidade. Ele se desvela como algo simplesmente dado que não pode mover-se sem o que falta. Ficar sem saber o que fazer é um modo deficiente de ocupação que descobre o SER SIMPLESMENTE DADO de um manual. STMSC: §16

Na lida com o mundo na ocupação, ainda se pode encontrar um manual não apenas no sentido do que não pode ser empregado ou do que simplesmente está faltando, mas também, enquanto não manual. O que não falta e não é passível de emprego, como o que “obstrui o caminho” para a ocupação. Aquilo para que a ocupação não pode voltar-se, aquilo para que ela não tem “tempo”, é um não manual, no modo do que não pertence ou não se finalizou. Esse não estar à mão perturba e faz aparecer a impertinência do que, numa primeira aproximação e antes de tudo, deve ocupar-se. Com esta impertinência, anuncia-se de maneira nova o SER SIMPLESMENTE DADO do manual como o ser daquilo que se apresenta, exigindo ainda a sua finalização. STMSC: §16

Os modos de surpresa, importunidade e impertinência possuem a função de mostrar o caráter de algo simplesmente dado do manual. Com isso, porém, não se considera ou encara meramente o manual como algo simplesmente dado. O SER SIMPLESMENTE DADO aqui anunciado ainda está ligado à manualidade do instrumento. Ele ainda não está entranhado como simples coisa. O instrumento torna-se instrumento no sentido de um “troço” do qual gostaríamos de nos desembaraçar; nessa tendência de desembaraço, contudo, o manual se mostra como o que é sempre manual no incontornável de seu SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §16

O que, no entanto, significa para o esclarecimento do fenômeno do mundo essa visualização do encontro modificado com o manual em que se desvela o seu modo de SER SIMPLESMENTE DADO? Mesmo com a análise dessa modificação ainda estamos no ser dos entes intramundanos e ainda não nos avizinhamos do fenômeno do mundo. Embora ainda não tenha sido apreendido, dispomos agora da possibilidade de ver o fenômeno. STMSC: §16

Que o mundo não “consista” de manuais, isso se mostra, dentre outras coisas, porque, junto com o evidenciar-se de mundo nos modos interpretados da ocupação, ocorre simultaneamente uma desmundanização do manual, de tal maneira que ele aparece como SER SIMPLESMENTE DADO. Para que se possa encontrar o instrumento manual em seu “ser-em-si” nas ocupações cotidianas do “mundo circundante”, as referências e conjuntos referenciais em que a circunvisão “se empenha” não devem ser tematizados nem para ela e nem, principalmente, para uma apreensão “temática”, desprovida de circunvisão. O não-anunciar-se do mundo é a condição de possibilidade para que o manual não saia da sua não-surpresa. E é isso que constitui a estrutura fenomenal do ser-em-si desse ente. STMSC: §16

As expressões privativas como não-surpresa, não importuno, não impertinente indicam um caráter fenomenal positivo do ser que está imediatamente à mão. Esse “não” indica o caráter de manter-se em si do manual. É o que temos em mente com a expressão ser-em-si e que, de maneira característica, atribuímos primeiramente ao SER SIMPLESMENTE DADO, passível de constatação temática. Uma orientação exclusiva ou primordial pelo que é simplesmente dado não pode esclarecer ontologicamente o “em-si”. Caso se recorra com razão fenomenal e ênfase ôntica ao em-si do ser, então faz-se necessária uma interpretação. Esse recurso ôntico, no entanto, não preenche a exigência pretensamente dada de um enunciado ontológico. A análise empreendida até agora mostra claramente que só se pode apreender ontologicamente o ser-em-si dos entes intramundanos com base no fenômeno do mundo. STMSC: §16

Segundo a interpretação feita até aqui, ser-no-mundo significa: empenhar-se de maneira não temática, guiando-se pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental. A ocupação já é o que é, com base numa familiaridade com o mundo. Nessa familiaridade, a presença (Dasein) pode perder-se e ser absorvida pelo ente intramundano que vem ao seu encontro. O que é isso com que a presença (Dasein) se familiariza e por que a determinação mundana dos entes intramundanos pode aparecer? Como se deve compreender mais precisamente a totalidade referencial em que se “move” a circunvisão e cujas possíveis quebras impõem o SER SIMPLESMENTE DADO dos entes? STMSC: §16

Indicou-se a constituição instrumental do manual como referência. Como o mundo pode liberar em seu ser os entes dotados desse modo de ser? Por que esse ente é o que vem ao encontro em primeiro lugar? Consideramos a serventia, o dano, a possibilidade de emprego, etc. como referências determinadas. O para quê (Wozu) de uma serventia e o em quê (Wofür) de uma possibilidade de emprego delineiam a concreção possível da referência. A “ação de mostrar” do sinal, o “martelar” do martelo não são, contudo, propriedades dos entes. Não são propriedades em sentido algum, caso esse termo deva designar a estrutura ontológica de uma determinação possível de coisas. Em todo caso, o manual é apropriado ou não apropriado e, nessas apropriações, suas “propriedades” acham-se, por assim dizer, articuladas, do mesmo modo que o SER SIMPLESMENTE DADO, na qualidade de modo possível de ser de um manual na manualidade. Como constituição do instrumento, a serventia (referência) também não é o ser apropriado de um ente, mas a condição ontológica da possibilidade para que possa ser determinado por apropriações. O que diria, pois, nesse caso, referência? O ser do manual tem a estrutura da referência. Isso significa: ele possui em si mesmo o caráter de estar referido a. O ente se descobre enquanto referido a uma coisa como o ente que ele mesmo é. O ente tem com o ser que ele é algo junto. O caráter ontológico do manual é a conjuntura. Na conjuntura se diz: algo se deixa e faz junto a. É essa remissão de “com… junto…” que se pretende indicar com o termo referência. STMSC: §18

No âmbito do presente campo de investigação, as diferenças repetidas vezes marcadas entre as estruturas e dimensões da problemática ontológica devem-se manter fundamentalmente separadas: 1) o ser dos entes intramundanos, que primeiro vêm ao encontro (manualidade); 2) o ser dos entes (SER SIMPLESMENTE DADO) que se acham e se podem determinar num percurso autônomo de descoberta através dos entes que primeiro vêm ao encontro; 3) o ser da condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade {CH: melhor, a vigência do mundo} do mundo. Este último é uma determinação existencial do ser-no-mundo, ou seja, da presença (Dasein). Os outros dois conceitos de ser são categorias e abrangem entes que não possuem o modo de ser da presença (Dasein). Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão “simples” como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas “relações” e “relatas” do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse “sistema de relações” constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu “em-si substancial”. E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste SER SIMPLESMENTE DADO é que se podem determinar matematicamente “propriedades” desses entes em “conceitos de funções”. Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. STMSC: §18

Na exposição do problema da mundanidade (§14), indicou-se a importância de se obter uma via de acesso adequada ao fenômeno. Na discussão crítica do ponto de partida cartesiano teremos, pois, de perguntar: Que modo de ser da presença (Dasein) é fixado como a via de acesso adequada ao que, enquanto extensio, Descartes identifica com o ser do “mundo”? A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecer, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como o modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio, só é aquilo que tem o modo de ser capaz de satisfazer o ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso, ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui o seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante, como remanens capax mutationum. Propriamente só é o que sempre permanece. E é isso o que a matemática conhece. O que no ente se torna acessível pela matemática constitui, portanto, o seu ser. Assim, de uma determinada ideia de ser, inserida no conceito de substancialidade e a partir da ideia de um conhecimento relativo ao ente assim conhecido, dita-se, por assim dizer, ao “mundo” o seu ser. Descartes não retira o modo de ser dos entes intramundanos deles mesmos. Com base numa ideia de ser, velada em sua origem e não demonstrada em sua legitimidade (ser = constância do SER SIMPLESMENTE DADO), ele prescreve ao mundo o seu ser “próprio”. Não é, portanto, principalmente o apoiar-se numa ciência particular e, por acaso, especialmente estimada, a matemática, o que determina {CH: mas direcionamento pelo matemático como tal, mathema e ón} a ontologia do mundo, mas uma orientação fundamentalmente ontológica pelo ser enquanto constância do SER SIMPLESMENTE DADO, cuja apreensão é lograda, de modo excepcional, pelo conhecimento matemático. Descartes cumpre, assim, de maneira filosoficamente explícita, a virada das influências da ontologia tradicional sobre a física matemática moderna e os seus fundamentos transcendentais. STMSC: §21

A dureza é compreendida como resistência. Assim como a dureza, esta última não é entendida num sentido fenomenal como alguma coisa experimentada em si mesma e, nessa experiência, passível de determinação. Para Descartes, resistência significa não sair do lugar, isto é, não sofrer deslocamento. Neste sentido, a resistência de uma coisa significa permanecer num lugar determinado com relação a uma outra coisa que troca de lugar, ou trocar de lugar numa tal velocidade que pode ser por ela “alcançada”. Mediante esta interpretação da experiência de dureza, apaga-se o modo de ser da percepção sensível e, com isso, a possibilidade de se apreender em seu ser o ente dado nessa percepção. Descartes traduz o modo de ser da percepção de alguma coisa para o único modo de ser que conhece: a percepção de alguma coisa torna-se justaposição determinada de duas res extensae simplesmente dadas, em que as suas relações de movimento se dão no modus da extensio que caracteriza primordialmente o SER SIMPLESMENTE DADO de uma substância corpórea. Sem dúvida, o “preenchimento” possível de um relacionamento tátil exige uma “proximidade” especial do que pode ser tocado. Isso, no entanto, não quer dizer que o tocar e a dureza que nele se anunciam consistam, do ponto de vista ontológico, na velocidade diferente de duas coisas corpóreas. Dureza e resistência não se mostram de forma alguma quando não se dá um ente dotado do modo de ser da presença (Dasein) ou, ao menos, de um ser vivo. STMSC: §21

A ideia de ser como constância do SER SIMPLESMENTE DADO motiva não apenas uma determinação extremada do ser dos entes intramundanos e de sua identificação com o mundo em geral, como também impede que se perceba, de maneira ontologicamente adequada, os comportamentos da presença (Dasein). com isso veda-se completamente o caminho para se ver o caráter fundado de toda percepção sensível e intelectual e para compreendê-las como uma possibilidade do ser-no-mundo. Descartes, no entanto, apreende o ser da “presença (Dasein)”, a cuja constituição fundamental pertence o ser-no-mundo, da mesma maneira que o ser da res extensa, isto é, como substância. STMSC: §21

Mas será que neste caminho, que faz abstração do problema específico do mundo, ainda se poderá alcançar ontologicamente o ser do que nos vem imediatamente ao encontro dentro do mundo? Não será que com esta determinação material da coisa se estabelece implicitamente como ponto de partida um ser – a constância do SER SIMPLESMENTE DADO das coisas – que não experimenta nenhuma complementação ontológica através do aparelhamento posterior dos entes com predicados de valor, em que esses predicados permanecem apenas determinações ónticas de um ente que possui o modo de ser de coisa? O acréscimo de predicados de valor não é capaz de propiciar em nada uma nova perspectiva sobre o ser dos bens, mas apenas pressupõe para estes o modo de ser de puras coisas simplesmente dadas. Valores são determinações simplesmente dadas de uma coisa. Em última instância, os valores têm sua origem ontológica unicamente no ponto de partida prévio da realidade das coisas como nível fundamental. A experiência pré-fenomenológica, no entanto, já mostra nos entes entendidos como coisa algo que não pode ser inteiramente compreendido por meio desse caráter. O ser coisa necessita, pois, de uma complementação. Do ponto de vista ontológico, o que significa o ser dos valores, ou seja, “a sua validade”, que Lotze compreendia como um modus de “afirmação”? O que significa ontologicamente esta “aderência” dos valores às coisas? Enquanto estas determinações não forem esclarecidas, a reconstrução das coisas de uso a partir das coisas naturais continuará sendo um empreendimento ontológico duvidoso, para não se dizer nada da distorção de princípio que sofre a problemática. E essa reconstrução de uma coisa de uso inicialmente “descascada” não necessitaria sempre de uma visão prévia e positiva do fenômeno cuja totalidade deve ser reproduzida na reconstrução! Se, porém, a sua própria constituição de ser não tiver sido explicitada previamente de modo adequado, a reconstrução procederá sem qualquer projeto. Como a reconstrução e a “complementação” da ontologia tradicional do “mundo” chegam, em seu resultado, ao mesmo ente do qual partiu a análise acima referida da manualidade de instrumental e da totalidade conjuntural, surge a impressão de se ter esclarecido, de fato, o ser deste ente ou, ao menos, de tê-lo tomado como problema. Da mesma forma que Descartes não alcança o ser da substância com a extensio enquanto proprietas, assim também o recurso para as qualificações de “valor” não é capaz de visualizar o ser como mera manualidade e muito menos de elevá-lo à esfera de um tema ontológico. STMSC: §21

Já indicamos (§14) que saltar por cima do mundo e daquele ente que imediatamente vem ao encontro não é um acaso nem um lapso que pudesse ser posteriormente reparado, mas que isso se funda num modo de ser essencial da própria presença (Dasein). A ontologia cartesiana do mundo é ainda hoje vigente em seus princípios fundamentais. A crítica aqui empreendida só pode alcançar a sua legitimidade filosófica no momento em que a analítica da presença (Dasein) tiver tornado transparentes, no âmbito desta problemática, as suas estruturas mais importantes. E, além disso, quando houver remetido ao conceito de ser o horizonte de sua possível compreensibilidade {CH: sic! decerto, “compreensibilidade” para o compreender enquanto projeto e este como temporalidade ekstática} e, assim, compreendido ontologicamente de modo originário tanto a manualidade quanto o SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §21

Até que ponto, na caracterização do manual, já nos deparamos com a sua espacialidade? Já falamos do que numa primeira aproximação se apresenta como manual. Isto não indica apenas o ente que vem ao encontro em primeiro lugar, aludindo igualmente ao ente que se acha na “proximidade”. O manual do modo de lidar cotidiano possui o caráter de proximidade. Examinando-se com precisão, esta proximidade do instrumento já se acha indicada no próprio termo que exprime seu ser, na “manualidade”. O ente “à mão” sempre possui uma proximidade diferente que não se estipula medindo-se distâncias. Essa proximidade regula-se a partir do uso e manuseio “a se levar em conta” na circunvisão. A circunvisão da ocupação fixa o que, desse modo, está próximo também quanto à direção em que o instrumento é, cada vez, acessível. A proximidade direcionada do instrumento significa que ele não ocupa uma posição no espaço, meramente localizada em algum lugar, mas que, como instrumento, ele se acha, essencialmente, instalado, disposto, instituído e alojado. O instrumento tem seu lugar ou então “está por aí”, o que se deve distinguir fundamentalmente de uma simples ocorrência numa posição arbitrária do espaço. Cada lugar se determina como lugar deste instrumento para… , a partir de um todo de lugares reciprocamente direcionados do conjunto instrumental, “à mão” no mundo circundante. O lugar e a multiplicidade de lugares não devem ser interpretados como o onde de qualquer SER SIMPLESMENTE DADO de coisas. O lugar é sempre o “aqui” e “lá” determinados, a que pertence um instrumento. Essa pertinência corresponde ao caráter de instrumento do manual, isto é, ao pertencer a um todo instrumental segundo uma conjuntura. A condição de possibilidade da pertinência localizável de um todo instrumental reside no para onde a que se remete a totalidade dos lugares de um contexto instrumental. Chamamos de região este para onde da possível pertinência instrumental, previamente visualizado no modo de lidar da ocupação dotada de uma circunvisão. STMSC: §22

Ao atribuirmos espacialidade à presença (Dasein), temos evidentemente de conceber este “ser-no-espaço” a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da presença (Dasein) não é um SER SIMPLESMENTE DADO e por isso não pode significar ocorrer em alguma posição do “espaço cósmico” e nem estar à mão em um lugar. Ambos são modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. A presença (Dasein), no entanto, está e é “no” mundo, no sentido de lidar familiarmente na ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum modo, a espacialidade lhe convém, isto só é possível com base nesse ser-em. A espacialidade do ser-em apresenta, porém, os caracteres de dis-tanciamento e direcionamento. STMSC: §23

A resposta à pergunta: quem é sempre este ente (a presença (Dasein)) aparentemente já foi dada (§9) com a indicação formal das determinações fundamentais da presença (Dasein). A presença (Dasein) é o ente que eu mesmo sempre sou, o ser é sempre meu. Esta determinação indica uma constituição ontológica, mas também só isso. Ao mesmo tempo contém a indicação ôntica, se bem que a grosso modo, de que sempre este ente é um eu e não um outro. O quem responde a partir de um eu mesmo, do “sujeito”, do si-mesmo. O pronome quem é aquilo que, nas mudanças de atitude e vivência, mantém-se idêntico e, assim, refere-se a esta multiplicidade. Do ponto de vista ontológico, nós o entendemos como algo simplesmente dado para e numa região fechada que, num sentido privilegiado, oferece uma base enquanto o subjectum. Sendo sempre o mesmo, possui, nas muitas alterações, o caráter de si-mesmo. Por mais que se rejeite a substância da alma ou o caráter de coisa da consciência (Bewusstsein) e de objetividade da pessoa, ontologicamente fica-se atrelado, já de saída, a algo cujo ser guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de SER SIMPLESMENTE DADO. A substancialidade é o guia ontológico da determinação dos entes a partir do qual se responde à pergunta quem. De maneira implícita, concebe-se previamente a presença (Dasein) como algo simplesmente dado. Em todo caso, o caráter indeterminado de seu ser sempre implica este sentido. Ora, o SER SIMPLESMENTE DADO é o modo de ser de um ente que não possui o caráter da presença (Dasein). STMSC: §25

Mas se o ser-si-mesmo “só” puder ser concebido como um modo de ser desse ente, isto parece equivaler a uma dissolução do “cerne” propriamente dito da presença (Dasein). Tais temores, no entanto, alimentam-se do preconceito de que o ente em questão tem, no fundo, o modo de SER SIMPLESMENTE DADO, por mais que dele se mantenha afastado o caráter massivo de uma coisa corpórea. Em contrapartida, a “substância” do homem é a existência e não o espírito enquanto síntese de corpo e alma. STMSC: §25

A “descrição” do mundo circundante mais próximo, por exemplo, do mundo do artesão, mostrou que, com o instrumento em ação, também “vêm ao encontro” os outros, aos quais a “obra” se destina. No modo de ser desse manual, ou seja, em sua conjuntura, subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está “talhada sob medida”. Do mesmo modo, junto com o material empregado, também vem ao encontro o seu produtor ou “fornecedor”, enquanto aquele que “serve” bem ou mal. O campo, por exemplo, onde passeamos “lá fora” mostra-se como o campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foi presenteado por… e assim por diante. Em seu ser-em-si, o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um “barco desconhecido” mostra outros. Os outros que assim “vêm ao encontro”, no conjunto instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. Na análise feita até aqui, a periferia daquilo que vem ao encontro dentro do mundo restringiu-se, de início, ao instrumento manual e à natureza simplesmente dada e, assim, aos entes destituídos do caráter da presença (Dasein). Esta restrição não apenas era necessária para simplificar a explicação, mas, sobretudo, porque o modo de ser da presença (Dasein) dos outros que vêm ao encontro dentro do mundo diferencia-se da manualidade e do SER SIMPLESMENTE DADO. O mundo da presença (Dasein) libera, portanto, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de presença (Dasein), são e estão “no” mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como a própria presença (Dasein) liberadora – são também co-presenças. Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: “mundo” é também presença (Dasein). STMSC: §26

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença (Dasein). Será que essa caracterização não provém de uma distinção e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do sujeito isolado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um SER SIMPLESMENTE DADO “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é uma determinação da presença (Dasein). O “também” significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “com” e “também” devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença (Dasein) é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença (Dasein). STMSC: §26

O encontro com os outros não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito, de início já simplesmente dado, se distingue dos demais sujeitos, nem numa visão primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença. Eles vêm ao encontro a partir do mundo em que a presença (Dasein) se mantém, de modo essencial, empenhada em ocupações guiadas por uma circunvisão. Em oposição aos “esclarecimentos” teóricos, que facilmente se impõem sobre o SER SIMPLESMENTE DADO dos outros, deve-se ater ao teor fenomenal demonstrado de seu encontro no mundo circundante. Esse modo de encontro mundano mais próximo e elementar da presença (Dasein) é tão amplo que a própria presença (Dasein) nele, de saída, já “encontra” a si mesma, desviando o olhar ou nem mesmo vendo “vivências” e “atos”. A presença (Dasein) encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda – no que está imediatamente à mão no mundo circundante, em sua ocupação. STMSC: §26

“Ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é também preocupação. Numa simetria com a ocupação, entendemos essa expressão como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de instituição social fática, por exemplo, funda-se na constituição de ser da presença (Dasein) enquanto ser-com. Sua urgência provém de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença (Dasein) manter-se nos modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença, caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com outro. Também esses modos de ser apresentam o caráter de não surpresa e evidência que convém tanto a co-presença (Dasein) intramundana cotidiana dos outros como a manualidade do instrumento de que se ocupa no dia-a-dia. Esses modos indiferentes da convivência recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como SER SIMPLESMENTE DADO de muitos sujeitos. Embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros. STMSC: §26

A presença (Dasein) cotidiana retira a interpretação pré-ontológica de seu ser do modo de ser mais imediato do impessoal. A interpretação ontológica segue inicialmente esta tendência e entende a presença (Dasein) a partir do mundo, onde a encontra como ente intramundano. E não somente isto; a ontologia “mais imediata” da presença (Dasein) recebe previamente do “mundo” o sentido do ser em virtude do qual estes “sujeitos” se compreendem. Entretanto, uma vez que neste concentrar-se no mundo salta-se por cima do próprio fenômeno do mundo, em seu lugar aparece o que é simplesmente dado dentro do mundo: as coisas. O ser dos entes em sua co-presença (Dasein) é então compreendido como SER SIMPLESMENTE DADO. Dessa maneira, a demonstração do fenômeno positivo do ser-no-mundo mais cotidiano possibilita adentrar as raízes da interpretação ontologicamente desviada desta constituição de ser. É ela mesma que, em seu modo de ser cotidiano, de início se encobre e não é encontrada. STMSC: §27

Se já o ser da convivência cotidiana, que, do ponto de vista ontológico, parece vizinho ao SER SIMPLESMENTE DADO, é diferente em princípio, então não se pode de forma alguma compreender o que é propriamente si-mesmo como algo simplesmente dado. O ser do que é propriamente si-mesmo não repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele é uma modificação existenciária do impessoal como existencial constitutivo. STMSC: §27

Em que direção deve-se olhar para que se possa caracterizar fenomenalmente o ser-em como tal? A resposta encontra-se, quando se recorda o que, na indicação do fenômeno, já foi confiado a visão fenomenológica: o ser-em difere da interioridade de algo simplesmente dado “em” um outro; o ser-em não é propriedade de um sujeito simplesmente dado, separada ou apenas provocada pelo SER SIMPLESMENTE DADO do “mundo”; ao contrário, o ser-em é um modo de ser essencial do próprio sujeito. Que mais se apresentaria neste fenômeno do que um commercium simplesmente dado entre um sujeito simplesmente dado e um objeto simplesmente dado? Esta interpretação aproximar-se-ia dos dados fenomenais se dissesse: a presença (Dasein) é o ser deste “entre”. Mesmo assim, a orientação pelo “entre” continuaria provocando mal-entendidos, pois impediria de se ver a indeterminação ontológica do ponto de partida de um ente em meio ao qual “é e está” este entre como tal. Nesse caso, o entre já estaria sendo concebido como resultado da conveniência entre duas coisas simplesmente dadas. O seu ponto de partida prévio já explode o fenômeno e seria insensato tentar recompô-lo novamente a partir de seus fragmentos. Não é apenas que falte a “argamassa”. Também o “esquema”, segundo o qual a integração pode realizar-se, foi explodido ou jamais se desvendou. Do ponto de vista ontológico, é decisivo evitar previamente a fragmentação do fenômeno, o que significa assegurar o seu teor fenomenal positivo. Que sejam necessárias muitas circunstâncias para que isso se cumpra ontologicamente, isso foi, ontologicamente desvirtuado em tais proporções no modo tradicional de tratar o “problema do conhecimento” que chegou a se distorcer, a ponto de se tornar invisível. STMSC: §28

Numa imagem ôntica, falar de lumen naturale no homem não indica mais do que a estrutura ontológico-existencial deste ente, ou seja, de ser no modo do pre (das Da) de sua presença (Dasein). Ser “esclarecido” significa: estar em si mesmo iluminado {CH: aletheia – abertura – claridade, luminosidade, iluminar} como ser-no-mundo, não através de um outro ente, mas de tal maneira que ele mesmo seja {CH: mas não produzido} a clareira. É para um ente existencialmente iluminado desse modo que um SER SIMPLESMENTE DADO faz-se acessível na luz e inacessível no escuro. A presença (Dasein) sempre traz consigo o seu pre (das Da) e, desprovida dele, ela não apenas deixa faticamente de ser, como deixa de ser o ente dessa essência. A presença (Dasein) é {CH: presença (Dasein) existe e só ela; com isso existência, o estar fora e exposto no aberto do pre (das Da): ek-sistência} a sua abertura. STMSC: §28

Esse “que é” constitui um caráter ontológico da presença (Dasein), encoberto em seu de onde e para onde, que, no entanto, tanto mais se abre em si mesmo quanto mais encoberto permanece. Chamamos esse “que é” de estar-lançado em seu pre (das Da), no sentido de, enquanto ser-no-mundo, este ente ser sempre o seu pre (das Da). A expressão estar-lançado deve indicar a facticidade da responsabilidade. Esse “que é e ter de ser”, aberto na disposição da presença (Dasein), não é aquele “que”, o qual do ponto de vista ontológico-categorial exprime a fatualidade pertencente ao SER SIMPLESMENTE DADO. Esse só se faz acessível numa constatação observadora. Em contrapartida, deve-se conceber esse que aberto na disposição, como determinação existencial deste ente que é no modo de ser-no-mundo. Facticidade não é a fatualidade do factum brutum de um SER SIMPLESMENTE DADO, mas um caráter ontológico da presença (Dasein) assumido na existência, embora, desde o início, reprimido. Esse que da facticidade jamais pode ser encontrado numa intuição. STMSC: §29

O de que se teme, o “amedrontador”, é sempre um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que possui o modo de ser do que está à mão, ou do SER SIMPLESMENTE DADO ou ainda da co-presença (Dasein). Não se trata de relatar onticamente o ente que, na maior parte das vezes e das mais diversas formas, pode tornar-se “amedrontador”. Trata-se de determinar fenomenalmente o que é amedrontador em seu ser amedrontador. O que pertence ao amedrontador como tal a ponto de vir ao encontro no ter medo? Aquilo de que se tem medo possui o caráter de ameaça. Isso implica varias coisas: 1. O que vem ao encontro possui o modo conjuntural de ser prejudicial. Ele sempre se mostra dentro de um contexto conjuntural. 2. Esse prejudicial visa a um âmbito determinado daquilo que pode encontrar. Chega trazendo em si a determinação de uma região dada. 3. A própria região e o “estranho” que dela provem são conhecidos. 4. Enquanto ameaça, o prejudicial não se acha ainda numa proximidade dominável, ele se aproxima. Nesse aproximar-se, o prejudicial se irradia, e seus raios apresentam o caráter de ameaça. 5. Esse aproximar-se aproxima-se dentro da proximidade. O que, na verdade, pode ser prejudicial no mais alto grau e até constantemente se aproxima, embora mantendo-se a distância, vela seu ser amedrontador. É, porém, aproximando-se na proximidade que o prejudicial ameaça, pois pode chegar ou não. Na aproximação cresce esse “pode chegar, mas por fim não”. Então dizemos, é amedrontador. 6. Isso significa: ao se aproximar na proximidade, o prejudicial traz consigo a possibilidade desvelada de ausentar-se e passar ao largo, o que não diminui nem resolve o medo, ao contrário, o constitui. STMSC: §30

Numa fala ôntica, usamos muitas vezes a expressão “compreender alguma coisa” no sentido de “estar a cavaleiro de…”, “estar por cima de…”, “poder alguma coisa”. O que se pode no compreender, assumido como existencial, não é uma coisa, mas o ser como existir. Pois no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença (Dasein) enquanto poder-ser. A presença (Dasein) não é algo simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela é possibilidade de ser. Toda presença (Dasein) é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade. A possibilidade essencial da presença (Dasein) diz respeito aos modos caracterizados de ocupação com o “mundo”, de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma. A possibilidade de ser, que a presença (Dasein) existencialmente sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode “se passar”. Como categoria modal do SER SIMPLESMENTE DADO, a possibilidade designa o que ainda não é real e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior a realidade e a necessidade. Como existencial, a possibilidade é, ao contrario, a determinação ontológica mais originária e mais positiva da presença (Dasein); assim como a existencialidade, numa primeira aproximação, ela só pode ser trabalhada como problema. O solo fenomenal que permite a sua visão oferece o compreender como o poder-ser capaz de propiciar aberturas. STMSC: §31

Compreender é o ser desse poder-ser, que nunca está ausente no sentido de algo que simplesmente ainda não foi dado, mas que, na qualidade essencial de nunca SER SIMPLESMENTE DADO, “é “ junto com o ser da presença (Dasein), no sentido de existência. A presença (Dasein) é de tal maneira que ela sempre compreendeu ou não compreendeu ser dessa ou daquela maneira. Enquanto um tal compreender, ela “sabe” a quantas ela mesma anda, isto é, a quantas anda o seu poder-ser. Esse “saber” não nasce primeiro de uma percepção imanente de si mesma, mas pertence ao ser do pre (das Da) da presença (Dasein) que, em sua essência, é compreender. E somente porque a presença (Dasein) é em compreendendo o seu pre (das Da), ela pode perder-se e desconhecer. E à medida que compreender está na disposição e, nessa condição, lançado existencialmente, a presença (Dasein) já sempre se perdeu e desconheceu. Em seu poder-ser, portanto, a presença (Dasein) já se entregou a possibilidade de se reencontrar em suas possibilidades. STMSC: §31

Com base no modo de ser que se constitui através do existencial do projeto, a presença (Dasein) é sempre “mais” do que é fatualmente, mesmo que se quisesse ou pudesse registrá-la como um SER SIMPLESMENTE DADO em seu teor ontológico. No entanto, ela nunca é mais do que é faticamente, porque o poder-ser pertence essencialmente a sua facticidade. Também a presença (Dasein), enquanto possibilidade de ser, nunca é menos, o que significa dizer que aquilo que, em seu poder-ser, ela ainda não é, ela é existencialmente. Somente porque o ser do “pre (das Da)” recebe sua constituição do compreender e de seu caráter projetivo, somente porque ele é tanto o que será quanto o que não será é que ela pode, ao se compreender, dizer: “venha a ser o que tu és!” {CH: mas quem “tu” és? Aquele como o qual tu te projetas a ti mesmo – aquele como tu te tornas}. STMSC: §31

Deve-se proteger o termo “visão” de mal-entendidos. Ele corresponde a iluminação, que caracterizamos como a abertura do pre (das Da). “Ver” significa não só não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu SER SIMPLESMENTE DADO. Para o significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. E o que todo “sentido” realiza em seu setor genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, desde o princípio, primariamente pelo “ver” enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode-se formalizar a visão e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser. STMSC: §31

Ao se mostrar que toda visão funda-se primariamente no compreender – a circunvisão da ocupação é o compreender enquanto compreensibilidade – retira-se da intuição pura a sua primazia que, noeticamente, corresponde à primazia ontológica tradicional do SER SIMPLESMENTE DADO. “Intuição” e “pensamento” {CH: como “compreensão” dianoia, mas não entender a compreensão a partir do entendimento} já são ambos derivados distantes do compreender. Também a “intuição ou visão da essência” (Wesensschau) fenomenológica está fundada no compreender existencial. Contudo, só se deve decidir alguma coisa sobre esse modo de ver depois de obtidos os conceitos explícitos de ser e da estrutura de ser, único modo em que os fenômenos podem vir a ser fenômenos em sentido fenomenológico. STMSC: §31

Mas, ver nesse circulo um vicio, buscar caminhos para evitá-lo e também “senti-lo” apenas como imperfeito inevitável, significa um mal-entendido de principio acerca do que e compreender. Não se trata de equiparar compreender e interpretação a um ideal de conhecimento, que determinado em si mesmo não passa de uma degeneração e que, na tarefa devida de apreender o SER SIMPLESMENTE DADO, perdeu-se na incompreensão de sua essência. Para se preencher as condições fundamentais de uma interpretação possível, não se deve desconhecer as suas condições essenciais de realização. O decisivo não e sair do círculo, mas entrar no circulo de modo adequado. Esse círculo do compreender não e um cerco em que se movimenta qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial, própria da presença (Dasein). O circulo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, decerto, só pode ser apreendida de modo autentico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e ultima tarefa e de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos populares e inspirações. Na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, ela deve assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas. Porque, de acordo com seu sentido existencial, compreender e o poder-ser da própria presença (Dasein); as pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em principio, a ideia de rigor das ciências mais exatas. A matemática não e mais rigorosa do que a historia. E apenas mais restrita, no tocante ao âmbito dos fundamentos existenciais que lhe são relevantes. STMSC: §32

O ente sustentado na posição prévia, por exemplo, o martelo, numa primeira aproximação, está à mão como um instrumento. Se ele se torna “objeto” de um enunciado, já se realiza previamente com o enunciado proposicional uma mudança na posição prévia. Aquilo com que lidava manualmente o fazer, isto é, a execução, torna-se aquilo “sobre” o que o enunciado mostra. A visão prévia visa a algo simplesmente dado no que está à mão. Através da visualização e para ela o manual vela-se como manual. Dentro deste descobrir do SER SIMPLESMENTE DADO que encobre a manualidade, determina-se o encontro de tudo que é simplesmente dado, em seu modo de dar-se. Só agora é que se abre o acesso às propriedades. O conteúdo com que o enunciado determina algo simplesmente dado é haurido do SER SIMPLESMENTE DADO como tal. A estrutura-”como” da interpretação modificou-se. O “como” já não basta para cumprir a função de apropriar-se do que se compreende numa totalidade conjuntural. No tocante às suas possibilidades de articular relações de remissão, o “como” separou-se da significância constitutiva do mundo circundante. O “como” é forçado a revelar-se com o SER SIMPLESMENTE DADO. Afunda-se na estrutura de mera visão que determina o simplesmente dado. A vantagem do enunciado consiste nesse nivelamento que transforma o “como” originário da interpretação, guiada pela circunvisão, no “como” de uma determinação do que é simplesmente dado. Somente assim o enunciado adquire a possibilidade de pura visualização demonstrativa. STMSC: §33

A analítica da presença (Dasein) que conduz ao fenômeno da cura deverá preparar a problemática ontológica fundamental, isto é, a questão do sentido de ser em geral. Para se ver, a partir do que já se obteve, mais do que a tarefa particular de uma antropologia a priori e existencial, deve-se reexaminar, de modo ainda mais penetrante, os fenômenos estreitamente ligados à questão do ser. Até agora, os modos explicitados de ser foram a manualidade e o SER SIMPLESMENTE DADO que determinam os entes intramundanos, destituídos do caráter de presença (Dasein). Porque, na tradição, a problemática ontológica compreendeu primariamente o ser no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO (”realidade”, “mundo”-real) e, por outro lado, o ser da presença (Dasein) permaneceu indeterminado do ponto de vista ontológico, é preciso discutir o nexo ontológico entre cura, mundanidade, manualidade e SER SIMPLESMENTE DADO (realidade). Isso leva a uma determinação mais precisa do conceito de realidade no contexto de uma discussão das questões epistemológicas de realismo e idealismo, orientadas por essa ideia. STMSC: §39

Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença (Dasein), é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença (Dasein) é ser-no-mundo. Aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se angustia daquilo que o medo teme? O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de algo prejudicial que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um específico poder-ser fático. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa faticamente indefinido que ente intramundano “ameaça” como também diz que o ente intramundano é “irrelevante”. Nada do que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele angustiar-se. A totalidade conjuntural do manual e do SER SIMPLESMENTE DADO que se descobre no mundo não tem nenhuma importância, ela se perde em si. O mundo possui o caráter de total insignificância. Na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora. STMSC: §40

A interpretação do compreender mostrou, ao mesmo tempo, que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela já se colocou na compreensão de “mundo”, segundo o modo de ser da decadência. Mesmo onde não se trata somente de uma experiência ôntica e sim de uma compreensão ontológica, a interpretação de ser orienta-se, de início, pelo ser dos entes intramundanos {CH: aqui deve-se separar: physis, idea, ousia, substantia, res, objetividade, SER SIMPLESMENTE DADO}. Com isso, salta-se por cima do ser do que, imediatamente, está à mão, concebendo-se primordialmente o ente como um conjunto de coisas simplesmente dadas (res). O ser recebe o sentido de realidade {CH: “realidade” como “atividade” e realitas como “coisidade”; posição intermediária do conceito kantiano de “realidade objetiva”}. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. De acordo com este deslocamento da compreensão de ser, a compreensão ontológica da presença (Dasein) volta-se para o horizonte desse conceito de ser. A presença (Dasein), assim como qualquer outro ente, é um real simplesmente dado. Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em consequência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica. Tal primazia obstrui o caminho para uma analítica da presença (Dasein) genuinamente existencial, turvando inclusive a visualização do ser dos entes intramundanos imediatamente à mão e forçando, por fim, a problemática de ser a tomar uma direção desviante. Os demais modos de ser determinam-se então de maneira negativa e privativa com referência à realidade. STMSC: §43

A questão se o mundo é real e se o seu ser pode ser provado, questão que a presença (Dasein) enquanto ser-no-mundo haveria de levantar – e quem mais poderia fazê-lo? – mostra-se, pois, destituída de sentido. Trata-se ademais de uma questão ambígua. Confunde-se e não se chega a distinguir mundo enquanto o contexto do ser-em e “mundo