(…) “liberação em relação às coisas (Gelassenheit zu den Dingen)” (Gelassenheit 23/54). Esse comportamento de Gelassenheit, que estaria além tanto da atividade quanto da passividade do sujeito da vontade, é uma das palavras-chave que Heidegger usa para falar do que traduzirei como “não-querer” (Nicht-Wollen). Gelassenheit é uma das várias expressões por meio das quais Heidegger tenta pensar o não-querer, embora ela, em particular, tenha se tornado reconhecida como um termo-chave de seu pensamento posterior. É necessária aqui uma discussão introdutória sobre como Heidegger adota e adapta essa “palavra antiga”, ao mesmo tempo em que se distancia de suas conotações passadas e presentes.
Embora a palavra Gelassenheit tenha se tornado familiar para muitos filósofos de língua inglesa através do próprio pensamento de Heidegger, as conotações que ela carrega — para o bem ou para o mal — em alemão devem ser reconhecidas. Como a forma nominalizada do particípio perfeito de lassen (deixar, permitir, sair), Gelassenheit pode ser traduzido como “soltura”. Mas essa palavra não nos fala com as nuances do alemão, e Gelassenheit às vezes é traduzido como “liberação” ou mesmo como “deixar-estar”. Uma coleção popular atual de ditados e textos de vários autores da antiguidade até os tempos modernos, Von der Gelassenheit: Texte zum Nachdenken, refere-se a “apatia, ataraxia, indiferença, abandono, tranquilidade” como nomes para Gelassenheit que podem ser encontrados em outras línguas. Andreas Nießeler informa que os jovens alemães de hoje adicionaram a esta lista de sinônimos a expressão inglesa “cool”. Nießeler aponta a ironia aqui, na medida em que “cool” pretende implicar “um jovem que tem total domínio de si mesmo e só faz o que quer (was er will)”. O Gelassene legal aparentemente não seria liberado, mas entregue ao, a arbitrariedade (Willkür) de seu capricho. Assim, a retórica de Gelassenheit é ironicamente cooptada pelo egoísmo do das Man (ou das Jugendliche, conforme o caso). Dadas essas conotações contemporâneas e o fato de Heidegger desconfiar de vincular seu pensamento de Gelassenheit muito próximo aos usos estoicos, cristãos ou seculares modernos do termo, talvez não seja surpreendente que o editor de Von der Gelassenheit não tenha sido permitido reimprimir uma passagem do texto de Heidegger intitulado Gelassenheit (traduzido para o inglês como Discourse on Thinking).
No entanto, é importante ter em mente não apenas as conotações atuais, mas também a história semântica do termo Gelassenheit, uma história que Heidegger assume de maneira crítica e inovadora. Como nos informa o artigo sobre “Gelassenheit” no Historisches Wörterbuch der Philosophie, o termo foi usado pelos místicos alemães medievais para se referir a um esvaziamento da “criatura” para ser preenchido com a graça de Deus — ou como Johannes Tauler põe em outras palavras, Gelassenheit verdadeira é uma questão de “falta de vontade” (Willenslosigkeit) que prepara alguém para recolher-se novamente no solo da vontade divina. Lutero e os teólogos da Reforma assumiram essa noção de abandonar a vontade própria (Eigenwille) a fim de confiar-se à vontade de Deus. Enquanto os teosofistas da era barroca e os teólogos do pietismo continuaram a desenvolver a noção religiosa de Gelassenheit como envolvida em uma volta a Deus, no final do século XVIII, o termo tornou-se popular na literatura secular como sinônimo de “gentileza” (Sanftmut), “calma” (Ruhe), “contentamento” (Zufriedenheit) e “equanimidade” (Gleichmut), se não talvez “indiferença” (Gleichgültigkeit). Foi contra a aparente passividade e desengajamento desse ideal literário de calma e Gelassenheit que os autores cheios de patos do movimento Sturm und Drang se rebelaram. Somente depois de pensadores do século XIX, como Schopenhauer e, à sua maneira, Nietzsche conseguiram reabilitar as implicações positivas de Gelassenheit, os “existencialistas”, como Jaspers, foram capazes de trazer o termo para o uso filosófico do século XX.
Atualmente, a enciclopédia Brockhaus define Gelassenheit como “o comportamento atingido por abandonar seus próprios desejos e cuidados, o comportamento de uma calma preparação mental para aceitar de bom grado dispensações destinais de todo tipo”. Como predecessores históricos, somos referidos à noção de “desapego” de Meister Eckhart (abgescheidenheit) e os ideais estoicos e epicuristas de apatia e ataraxia. É Eckhart, de fato, quem introduziu a forma nominal de Gelassenheit (gelâzenheit) e, como vimos, desde então a ideia tem uma história longa e variada, tanto religiosa quanto secular. O termo às vezes tem sido elogiado como uma liberação das preocupações mundanas para uma devoção a Deus (e sua vontade) ou como um desapego que permite objetividade teórica. Por outro lado, às vezes foi ridicularizada como uma “indiferença” herética aos deveres éticos (e até mesmo à realização da Vontade de Deus), como um quietismo que se retira do mundo ou como uma calma equanimidade inaceitável para a rebelião apaixonada dos proponentes de Sturm und Drang. Como veremos, no entanto, Heidegger tenta pensar em Gelassenheit além do próprio domínio desse conflito entre distanciamento passivo e rebelião voluntária.
É Gelassenheit compatível com a vita ativa? Uma distinção estrita (uma “oposição binária”) entre atividade e passividade — e a restrição redutiva resultante de Gelassenheit para a última categoria, isto é, como uma mera ausência de ação, se não uma negação da própria vida — é, com certeza, um preconceito arraigado da tradição que herdamos. O fato de acharmos difícil entender um sentimento “positivo” de “deixar-ser”, de atentamente liberar algo ou alguém para si próprio, testemunha a predominância do que Heidegger chama de “o domínio da vontade” em nossa linguagem, pensamento, e comportamento.
Deve-se notar, além disso, que a palavra “deixar” (em inglês “let”, para não mencionar a prevalência do conceito liberal de “liberdade negativa”) pode exacerbar esse preconceito. O alemão Lassen é usado como um auxiliar modal não apenas no sentido de permitir que algo aconteça passivamente ou de permitir que alguém faça algo, mas também no sentido de fazer alguma coisa. 1 Além disso, Sicheinlassen auf etwas significa “envolver-se em algo”. Por isso, enquanto Seinlassen (deixar-ser) pode ser usado em linguagem comum para significar “deixar por conta própria ou parar de fazer”, o Sein-lassen de Heidegger envolve um Sicheinlassen auf no sentido de “introduzir-se, engajar-se com, envolver-se com as coisas”; em outras palavras, “ativamente deixar” os entes serem eles mesmos. 2 Assim, para Heidegger, na verdade, dificilmente seria oxímoro falar de uma “engajado” liberação (engagierte Gelassenheit). 3
Em uma passagem importante a esse respeito, que tenta articular um sentido originário de liberdade anterior à oposição de seus sentidos “positivo” e “negativo”. Heidegger escreve:
A liberdade para o que é aberto em uma região aberta permite que os entes sejam os entes que são. A liberdade agora se revela como deixar os entes serem. . . . Normalmente, falamos de deixar ser … no sentido negativo de deixar algo de lado, de renunciar a ele, de indiferença e até mesmo de negligência. . . . Entretanto, a frase exigida agora — deixar os entes serem — não se refere à negligência e à indiferença, mas sim ao oposto. Deixar ser é envolver-se com os entes (Sein-lassen ist das Sicheinlassen auf das Seiende). Por outro lado, com certeza, isso não deve ser entendido apenas como o mero gerenciamento, preservação, cuidado e planejamento dos entes em cada caso encontrado ou procurado. Deixar ser — isto é, deixar os entes serem como os entes que são — significa envolver-se com o Aberto e sua abertura na qual cada ente vem ao encontro, trazendo essa abertura, por assim dizer, consigo mesmo. (GA 9:188/144)
- Por outro lado, Heidegger adverte os leitores alemães para não entenderem mal o Lassen de Seinlassen no sentido “causal” ativo de “fazer” (Machen); deve ser entendido, no sentido mais originário de uma “dação”, Geben (GA15: 363-64 / 59).[
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- Veja Michael Inwood, A Heidegger Dictionary (Oxford: Blackwell, 1999), 117.[
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- Veja Nießeler, Vom Ethos der Gelassenheit, 21. Nießeler defende a compatibilidade de Gelassenheit com a vita ativa e seu significado pedagógico, embora ele tenda a entendê-la principalmente como um sentido positivo de “lazer” (Muße) ou como uma “práxis teórica” de recuar, o que abre possibilidades para a atividade engajada (12, 50ss., 256ff.).[
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