Porque se diz que o ser do homem [Sein des Menschen] consiste em “ser-no-mundo”, acha-se que o homem [Mensch] foi degradado, reduzido a um ser meramente mundano (diesseitig), com o que a filosofia cai no positivismo. Pois, o que é “mais lógico” do que isto: quem afirma a mundaneidade do ser do homem, só dá valor ao mundano, nega o Além (das Jenseitige) e renuncia a toda “transcendência”? [CartaH]
A indicação do “ser-no-mundo”, como sendo o traço fundamental da humanitas do homo humanus não afirma que o homem é, meramente, um ser “mundano” no sentido cristão do termo, qual seja, apartado de Deus e desligado da “transcendência” [Transzendenz]. Procura-se exprimir com a palavra “transcendência” o que, com maior clareza, deveria ser chamado de transcendente. Pois o transcendente é o ente supra-sensível, considerado o ente supremo no sentido da causa primeira de todo ente. Pensa-se Deus como essa causa primeira. Ora, “mundo”, na expressão, “ser-no-mundo”, não significa, de forma alguma, ente terreno em oposição ao celeste nem “mundano” em oposição ao “espiritual’. “Mundo” não significa nenhum ente ou domínio de entes mas a abertura do Ser [Offenheit des Seins]. O homem é — e é homem — na medida em que é o ec-sistente [Ek-sistierende]. O homem está ex-posto à abertura do Ser, que é como abertura. Sendo o lance, (Wurf), o Ser lançou para si a Essência do homem na “cura” [Sorge]. Lançado desse modo, o homem está “na” abertura do Ser. “Mundo” é a clareira do Ser [Lichtung des Seins], à qual o homem se ex-põe por sua Essência lançada. O “ser-no-mundo” evoca a Essência da ec-sistência no tocante (im Hinblick auf) à dimensão clareada, a partir da qual se essencializa o “ec-” da ec-sistência. Pensado a partir da ec-sistência, o “mundo” é, de certo modo, o além (das Jenseitige) dentro e para a ec-sistência. O homem nunca é homem, aquém do mundo, como um “sujeito” [Subjekt], quer se entenda sujeito como “eu” [Ich] ou como “nós” [Wir]. Nem tampouco o homem é primeiro e somente sujeito enquanto se refere sempre a objetos, de sorte que sua Essência esteja na relação sujeito-objeto. Ao contrário, o homem é, em sua Essência, primeiro ec-sistente na abertura do Ser. E é o que se abre na abertura (das Offene), que clareia o meio” (das “Zwischen”) no qual pode “ser” uma “relação” [Beziehung] do sujeito [Subjekt] para o objeto [Objekt].
A frase: a Essência do homem repousa no ser-no-mundo, também não contém nenhuma decisão [Entscheidung], se, tomando o termo em sentido teológico-metafísico, o homem é apenas um ser desse mundo (diesseitig) ou um ser do outro mundo (jenseitig). [CartaH]
A expressão “ser-no-mundo” que caracteriza a transcendência [Transzendenz] nomeia um “estado de coisas” [Sachverhalt e, na verdade, um que aparentemente se compreende com facilidade. Contudo, o que com isto é visado depende da condição de o conceito de mundo ser tomado num sentido pré-filosófico vulgar ou num sentido transcendental. A análise de uma dupla significação do discurso sobre o ser-no-mundo pode esclarecer isto.
Transcendência concebida como ser-no-mundo, quer atribuir-se ao ser-aí humano [menschlichen Dasein]. Isto é, porém, afinal o mais trivial e o mais vazio que se deixa enunciar: o ser-aí [Dasein] também aparece entre os outros entes e é por isso também encontrável. Transcendência significa então: fazer parte do resto do ente que já subsiste puramente ou que respectivamente pode ser multiplicado continuamente até o ilimitado. Mundo [Welt] é, então, a expressão que resume tudo o que é, a totalidade [Allheit], como unidade [Einheit] que determina o “tudo” [Alles] como uma reunião [Zusammennehmung] e nada mais além. Se se toma como base para o discurso sobre o ser-no-mundo este conceito de mundo, então, sem dúvida, a “transcendência” deve ser atribuída a cada ente como puramente subsistente. Puramente subsistente [Vorhandenes], isto é, o que ocorre entre outras coisas, “está no mundo”. Se “transcendente” não diz nada mais que “fazendo parte dos restantes entes”, então é evidentemente impossível predicar a transcendência como constituição essencial característica do ser-aí humano. A proposição: da essência do ser-aí humano faz parte o ser-no-mundo é então mesmo evidentemente falsa. Pois não é essencialmente necessário que entes como o ser-aí humano existam faticamente. É claro que pode não ser.
Se, no entanto, por outro lado o ser-no-mundo é predicado do ser-aí com razão e exclusividade, e em verdade como constituição fundamental, então esta expressão não pode ter a significação acima citada. Então mundo também significa algo diferente que a totalidade do ente subsistente, que por acaso subsiste.
Predicar do ser-aí o ser-no-mundo como constituição fundamental [Grundverfassung] significa enunciar algo sobre sua essência [Wesen] (sua mais própria possibilidade interna enquanto ser-aí [seine eigenste innere Möglichkeit als Dasein]). Neste caso não se pode justamente considerar-se como instância orientadora se e qual ser-aí, agora justamente, existe faticamente [faktisch] ou não. O discurso [Rede] que trata do ser-no-mundo não é uma verificação da ocorrência fática de ser-aí [faktischen Vorkommens von Dasein]; é, aliás, de maneira alguma, uma enunciação ôntica [ontische Aussage]. Ela se refere a um estado de coisas essencial (Wesensverhalt) que determina o ser-aí em geral e tem como consequência o caráter de uma tese ontológica. Por conseguinte, importa: o ser-aí não é um ser-no-mundo pelo fato de, e apenas pelo fato de, existir faticamente; mas, pelo contrário, somente pode ser como existente, isto é, como ser-aí, porque sua constituição essencial reside no ser-no-mundo.
A proposição: o ser-aí fático está num mundo (ocorre entre outros entes) se trai como uma tautologia que nada diz. A enunciação: faz parte da essência do ser-aí o fato de estar no mundo (de também ocorrer “ao lado” de outros entes) se mostra falsa. A tese: da essência do ser-aí como tal faz parte o ser-no-mundo contém o problema de transcendência.
A tese é originária e simples. Disto não segue a facilidade de sua revelação, ainda que o ser-no-mundo somente possa – sempre apenas num único projeto com diferentes graus de transparência – ser elevado ao nível de uma compreensão preparatória a ser novamente (em verdade sempre relativamente) complementada conceitualmente.
Com a caracterização de ser-no-mundo realizada até agora, a transcendência do ser-aí foi determinada apenas defensivamente. Da transcendência faz parte mundo, como o horizonte em direção do qual acontece a ultrapassagem [Überstieg]. O problema positivo do que se deve entender por mundo, de como se deve determinar a “referência” do ser-aí [»Bezug« des Daseins] ao mundo, isto é, de como deve ser compreendido o ser-no-mundo como constituição do ser-aí [Daseinsverfassung] originariamente unida, tudo isto somente será analisado por nós naquela direção e nos limites que são exigidos pelo problema do fundamento [Problem des Grundes] que nos orienta. Com esta intenção [Absicht] tentaremos uma interpretação do fenômeno do mundo [Weltphänomens], que deverá ser de utilidade para a clarificação da transcendência como tal. [GA9:140-142; MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]
A presença [Dasein] não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da presença [Dasein] a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presença [Dasein] se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão de ser é em si mesma uma determinação de ser da presença [Dasein] [NH: ser aqui não apenas como ser do homem (existência). Isso se esclarece pelo seguinte: o SER-NO-MUNDO abriga em si a remissão da existência ao ser em seu todo: compreensão de ser]. O privilégio ôntico que distingue a presença [Dasein] está em ela ser ontológica. STMSCC: §4
O ente que temos a tarefa de analisar somos nós [NH: cada vez “eu”] mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser [NH: mas este é historicamente SER-NO-MUNDO], a presença [Dasein] se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser [NH: qual? ser o pre [das Da] e, com isso, resistir ao ser em geral] é o que neste ente está sempre em jogo. Desta caracterização da presença [Dasein] resultam duas coisas: STMSCC: §9
§12. Caracterização prévia do SER-NO-MUNDO a partir do ser-em como tal STMSCC: §12
Estas determinações do ser da presença [Dasein], todavia, devem agora ser vistas e compreendidas a priori, com base na constituição de ser que designamos de SER-NO-MUNDO. O ponto de partida adequado para a analítica da presença [Dasein] consiste em se interpretar esta constituição. STMSCC: §12
A expressão composta “SER-NO-MUNDO”, já na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenômeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, [98] não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem esta constituição. O achado fenomenal indicado nesta expressão comporta, de fato, uma tríplice visualização. Ao se examinar esse achado, mantendo-se previamente a totalidade do fenômeno, pode-se ressaltar o seguinte: STMSCC: §12
2. O ente que sempre é, segundo o modo de SER-NO-MUNDO. Investiga-se aqui o que indagamos com a interrogação “quem?” Numa demonstração fenomenal devemos determinar quem é e está no modo da cotidianidade mediana da presença [Dasein] (cf. cap. 4 desta seção). STMSCC: §12
3. O ser-em como tal; deve-se expor a constituição ontológica do próprio em (cf. cap. 5 desta seção). Todo destaque de um destes momentos constitutivos significa destacar também os demais, isto é, significa ver, cada vez, todo o fenômeno. O SER-NO-MUNDO é, sem dúvida, uma constituição necessária e a priori da presença [Dasein], mas de forma nenhuma suficiente para determinar por completo o seu ser. Antes das análises temáticas particulares destes três fenômenos, devemos buscar uma caracterização orientadora do momento constitutivo por último mencionado. STMSCC: §12
O ser-em, ao contrário, significa uma constituição de ser da presença [Dasein] e é um existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar no ser simplesmente dado de uma coisa corpórea (o corpo vivo do humano) “dentro” de um ente simplesmente dado. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, “dentro de outra” porque, em sua origem, o “em” não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie ; “em” deriva-se de innan-, morar, habitar, deter-se; “an” significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão “sou” conecta-se a “junto”; “eu sou” diz, por sua vez: eu moro, detenho-me junto… ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. Como infinitivo de “eu sou”, isto é, como existencial, ser [NH: ser é também infinitivo de “é”: o ente é] significa morar junto a, ser familiar com. O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença [Dasein] [NH: mas não do ser em geral e nem mesmo do próprio ser – pura e simplesmente] que possui a constituição essencial de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §12
Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença [Dasein]” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença [Dasein]” como um dado e somente como simples dado com um modo de “ser simplesmente dado”, próprio da presença [Dasein]. Pois este ser simplesmente dado não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua compreensão prévia. A presença [Dasein] compreende o [101] seu ser mais próprio no sentido de um certo “ser simplesmente dado fatual”. Na verdade, a “fatualidade” do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o SER-NO-MUNDO de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSCC: §12
De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no SER-NO-MUNDO em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa [44] corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de SER-NO-MUNDO como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço. STMSCC: §12
Com a facticidade, o SER-NO-MUNDO da presença [Dasein] já se dispersou ou até mesmo se fragmentou em determinados modos de ser-em. [102] Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar… Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação, que ainda será caracterizada mais profundamente. Modos de ocupação são também os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar, descansar, todos os modos de “ainda apenas”, no tocante às possibilidades da ocupação. O termo “ocupação” tem, de início, um significado pré-científico e pode designar: realizar alguma coisa, cumprir, “levar a cabo”. Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar “arranjar alguma coisa”. Ademais, usamos ainda a mesma expressão numa fórmula característica: preocupar-se com que uma empresa fracasse. “Preocupar-se” indica, neste caso, uma espécie de ter medo. Em oposição a estes significados pré-científicos e ônticos, a presente investigação usa a expressão “ocupar-se” para designar o ser de um possível SER-NO-MUNDO. Esta escolha não foi feita porque a presença [Dasein] é, em primeiro lugar e em larga escala, “prática” e econômica, mas porque o ser da presença [Dasein] deve tornar-se visível em si mesmo como cura. Mais uma vez, deve-se tomar a expressão como um conceito ontológico de estrutura (cf. cap. 6 desta seção). Esta expressão nada tem a ver com as “penas”, “tristezas” ou “preocupações” da vida as quais, do ponto de vista ôntico, podem ser encontradas em qualquer presença [Dasein]. Tudo isso, assim como a “jovialidade” e “despreocupação” só são onticamente possíveis porque, entendida ontologicamente, a presença [Dasein] é cura. Como SER-NO-MUNDO pertence ontologicamente à presença [Dasein], o seu ser para com o mundo é, essencialmente, ocupação [NH: aqui ser-homem e presença [Dasein] se equivalem]. STMSCC: §12
De acordo com o que foi dito, o SER-NO-MUNDO não é uma “propriedade” que a presença [Dasein] às vezes apresenta e outras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela. O homem não “é” no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. A presença [Dasein] nunca é “numa primeira aproximação” um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem gana de assumir uma “relação” com o mundo. Esse assumir relações com o mundo só é possível porque a presença [Dasein], sendo-no-mundo, é como é. Tal constituição de ser não surge porque, além dos entes dotados do caráter da presença [Dasein], ainda se dão outros entes, os simplesmente dados, que com ela se deparam. Esses outros entes só podem deparar-se “com” a presença [Dasein] quando conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um mundo. STMSCC: §12
A formulação, hoje muito em voga, de que o homem “tem seu mundo circundante” nada diz do ponto de vista ontológico, enquanto esse “ter” permanecer indeterminado. É que, em sua possibilidade, “ter” se funda na constituição existencial do ser-em. Sendo essencialmente desse modo, a presença [Dasein] pode, então, descobrir explicitamente o ente que lhe vem ao encontro no mundo circundante, saber algo a seu respeito, dele dispor, ter “mundo”. A formulação “ter um mundo circundante”, tão trivial do ponto de vista ôntico, é, do ponto de vista ontológico, um problema. Para resolvê-lo é imprescindível determinar, primeiro, de maneira suficiente e ontológica, o ser da presença [Dasein]. Porque a biologia se vale dessa constituição de ser – sobretudo depois de K.E. von Baer – não se deve deduzir um “biologismo” do uso filosófico dessa constituição. É que também a biologia, enquanto ciência positiva, não pode encontrar e determinar essa estrutura. Ao contrário, deve pressupô-la e dela a fazer [NH: será que aqui se trata mesmo de “mundo”? Apenas meio ambiente! Essa “ambiência” corresponde ao “ter”. Presença jamais “tem” mundo] um uso constante. Em si mesma essa estrutura só poderá ser filosoficamente explicitada como um a priori do objeto temático da biologia, depois de ter sido compreendida como estrutura da presença [Dasein]. Apenas orientando-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição de ser da “vida”. Tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, o SER-NO-MUNDO, enquanto ocupação tem a primazia. Na analítica da presença [Dasein], essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. STMSCC: §12
Mas será que a determinação desta constituição de ser, fornecida até aqui, não se move exclusivamente em proposições negativas? Só ouvimos o que não é este ser-em, pretensamente fundamental. De fato. Mas esta predominância de caracteres negativos não é mero acaso. Ao contrário, indica a peculiaridade do fenômeno e, portanto, num sentido autêntico e correspondente ao próprio fenômeno, algo de positivo. A demonstração fenomenológica do [104] SER-NO-MUNDO tem o caráter de uma recusa de encobrimentos e distorções porque este fenômeno já é sempre, de certo modo, “visto” em toda presença [Dasein]. E isto ocorre porque ele participa da constituição fundamental da presença [Dasein] na medida em que, com o seu ser, já se abriu à sua própria compreensão de ser. O fenômeno é, porém, na maioria das vezes, profundamente mal compreendido ou insuficientemente interpretado [NH: de fato! Ele não é absolutamente na medida do ser], do ponto de vista ontológico. Todavia, a esse “ver de certo modo e na maioria das vezes compreender mal” também se funda na constituição de ser da presença [Dasein] ela mesma, segundo a qual a presença [Dasein], numa primeira aproximação, compreende ontologicamente a si mesma (e, portanto, também o seu SER-NO-MUNDO) a partir dos entes e de seu ser, que ela mesma não é, mas que lhe vêm ao encontro [NH: uma significação retroativa] “dentro” de seu mundo. STMSCC: §12
Na própria presença [Dasein] e para ela, esta constituição de ser é, desde sempre e de alguma maneira, reconhecida. No entanto, para ser também conhecida, o conhecer explícito nessa tarefa toma a si mesmo, enquanto conhecimento do mundo, como relação exemplar entre “alma” e mundo. Por isso, conhecer o mundo (noein), dizer e discutir o “mundo” (logos) funcionam como modo primário de SER-NO-MUNDO, embora este último não seja concebido como tal. Porque, no entanto, esta estrutura de ser permanece ontologicamente inacessível, ela é experimentada onticamente como “relação” de um ente (mundo) com outro ente (alma). Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como ser simplesmente dado. Embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o SER-NO-MUNDO se torna invisível por via de uma interpretação ontologicamente inadequada. Agora só se conhece a constituição da presença [Dasein] e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnância de uma interpretação inadequada. Desse modo, esta interpretação torna-se o ponto de partida “evidente” para os problemas da epistemologia ou “metafísica do conhecimento”. Pois, o que é mais evidente do que um “sujeito” referir-se a um “objeto” e vice-versa? Esta correlação de sujeito-objeto é um pressuposto necessário. Mas tudo isso, embora inatacável em sua facticidade, ou melhor, justamente por isso, permanece [105] um pressuposto fatal, quando se deixa obscura a sua necessidade e, sobretudo, o seu sentido ontológico. STMSCC: §12
Se SER-NO-MUNDO é uma constituição fundamental da presença [Dasein] em que ela se move não apenas em geral mas, sobretudo, no modo da cotidianidade, então a presença [Dasein] já deve ter sido sempre experimentada onticamente. Permanecer totalmente velada seria incompreensível, principalmente porque a presença [Dasein] dispõe de uma compreensão ontológica de si mesma, por mais indeterminada que seja. Mas logo que “o fenômeno do conhecimento do mundo” se apreende em si mesmo, sempre recai numa interpretação formal e “externa”. Um indicador disso é a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como uma “relação de sujeito e objeto”, que se mostra tão “verdadeira” quanto vazia. Sujeito e objeto não coincidem, porém a com presença [Dasein] e mundo [NH: na verdade não! Tão pouco que, já na composição, o que recusa é fatal]. STMSCC: §13
Mesmo que se lograsse determinar ontológica e primariamente o ser-em a partir do SER-NO-MUNDO que conhece, isso implicaria, como primeira tarefa indispensável, uma caracterização fenomenal do conhecimento enquanto caracterização do ser-em e para o mundo. Ao se refletir sobre esta relação de ser, dá-se, logo de início, um ente, chamado natureza, como aquilo que primeiro se conhece. Neste ente não se encontra conhecimento. Quando “há” conhecimento, este pertence unicamente ao ente que conhece. Entretanto, o conhecimento também não é simplesmente dado nesse ente, a coisa homem. De todo modo, não pode ser constatado externamente [106] como, por exemplo, propriedades de nosso corpo. Não lhe pertencendo como uma qualidade externa, o conhecimento deve estar “dentro”. Assim, quanto mais univocamente se admite, em princípio, que o conhecimento está propriamente “dentro” e que nada possui do modo de ser de um ente físico e psíquico, tanto mais se acredita proceder sem pressuposições, na questão sobre a essência do conhecimento e sobre o esclarecimento da relação entre sujeito e objeto. Pois, só então é que poderá surgir o problema ou a seguinte questão: Como este sujeito que conhece sai de sua “esfera” interna e chega a uma “outra” esfera, a “externa”? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo, sem precisar arriscar o salto numa outra esfera? Nesse ponto de partida com suas múltiplas variações, abre-se mão constantemente de questionar o modo de ser do sujeito que conhece, embora, sempre, ao se tratar de seu conhecimento, esse modo de ser esteja implícito. Sem dúvida, se nos assegura que o interior ou a “esfera interna” do sujeito não é, decerto, pensada como uma “caixa” ou um “casulo”. Mas reina um grande silêncio sobre o que significa positivamente o “interior” da imanência em que o conhecimento está, de início, trancado, e como o caráter ontológico deste “estar dentro” do conhecimento se funda no modo de ser do sujeito. Como quer que se interprete esta esfera interna, ao se questionar como o conhecimento dela “sai” e a “transcende”, logo aparece que se considera o conhecimento problemático, sem que antes se tenha esclarecido como é e o que é em si mesmo este conhecimento que impõe a tarefa de um tal enigma. STMSCC: §13
Partindo dessa suposição, não se vê o que já está implicitamente dito na tematização mais provisória do fenômeno do conhecimento, a saber, que conhecer é um modo de ser da presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO, isto é, que o conhecer tem seu fundamento ôntico nesta constituição de ser. Contra esta indicação do achado fenomenal de que conhecer é um modo ontológico do SER-NO-MUNDO, poder-se-ia objetar que, com uma tal interpretação do conhecimento, aniquila-se o problema do conhecimento; pois o que ainda haveria de se questionar, quando se pressupõe que o conhecimento já está em seu mundo e que, na verdade, ele só poderia ser alcançado, [107] transcendendo o sujeito? Mesmo não se considerando que, na questão assim formulada, reaparece, mais uma vez, o “ponto de vista” construtivista, não demonstrado nos fenômenos, há de se perguntar que instância decide se e em qual sentido deve haver um problema do conhecimento, a não ser o próprio fenômeno do conhecimento e o modo de ser de quem conhece. STMSCC: §13
Se perguntarmos, agora, o que se mostra nos dados fenomenais do próprio conhecimento, deve-se admitir que o conhecer em si mesmo se funda previamente num já-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser da presença [Dasein] se constitui de modo essencial. Mas esse já-ser-junto-a não é, de início, apenas agarrar com rigidez algo simplesmente dado. Enquanto ocupação, o SER-NO-MUNDO é tomado pelo mundo de que se ocupa. É necessário que ocorra previamente uma deficiência do afazer que se ocupa do mundo para que o conhecimento, no sentido de determinação observadora de algo simplesmente dado, se torne possível. Abstendo-se de todo produzir, manusear etc, a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja, no simples demorar-se junto a… com base nesse modo de ser para o mundo, que só permite um encontro com o ente intramundano em sua pura configuração (eidos) e como modo dessa maneira de ser, é que se torna possível [NH: com a ab-stração ainda não se tem a visualização, pois esta possui uma origem própria e tem como consequência necessária a abstração; a consideração possui sua própria originariedade. A visão do eidos requer algo diferente] uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa visualização é sempre um direcionamento para…, um encarar o ente simplesmente dado. Retira antecipadamente do ente que vem ao encontro um “ponto de vista”. Essa visualização se dá em si mesma, demorando-se, de modo autônomo, junto ao ente intramundano. Nessa “demora” enquanto abstenção de todo manuseio e utilização – cumpre-se a percepção de um ente simplesmente dado. Esse perceber se realiza no modo de dizer e discutir algo como algo. A percepção torna-se determinação com base neste interpretar, entendido em sentido amplo. O que se percebe e determina pode ser pronunciado em proposições e manter-se e preservar-se nessa qualidade de enunciado. A manutenção perceptiva de um enunciado sobre… já é, em si mesma, um modo de SER-NO-MUNDO e não pode ser interpretada como um “processo”, através do qual um sujeito cria para si representações de alguma coisa, de tal maneira que estas representações, assim apropriadas, se conservem “dentro”, para, somente então, por [108] vezes, ser possível a pergunta de como elas haverão de “concordar” com a realidade. STMSCC: §13
Ao dirigir-se para… e apreender, a presença [Dasein] não sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulada. Em seu modo de ser originária, a presença [Dasein] já está sempre “fora”, junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido não é uma espécie de abandono da esfera interna. De forma nenhuma. Nesse “estar fora”, junto ao objeto, a presença [Dasein] está “dentro”, num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, é ela mesma que, como SER-NO-MUNDO, conhece. E, mais uma vez, a percepção do que é conhecido não é um retorno para o “casulo” da consciência (Bewusstsein) com uma presa na mão, após se ter saído em busca de apreender alguma coisa. De forma nenhuma. Quando, em sua atividade de conhecer, a presença [Dasein] percebe, conserva e mantém, ela, como presença [Dasein], permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontológico de um ente, num “mero” representar a si mesmo, num “simples” “pensar” em alguma coisa, como numa apreensão originária, eu estou fora no mundo, junto ao ente. Da mesma maneira que todo engano e erro, o esquecimento de alguma coisa em que, aparentemente, se apaga qualquer relação de ser com o que antes se sabia, deve ser concebido como uma modificação do ser-em originário. STMSCC: §13
Esse contexto de fundamentação dos modos de SER-NO-MUNDO constitutivos do conhecimento de mundo evidencia que, ao conhecer, a presença [Dasein] adquire um novo estado de ser, no tocante ao mundo já sempre descoberto. Esta nova possibilidade de ser pode desenvolver-se autonomamente, pode tornar-se uma tarefa e, como ciência, assumir a direção do SER-NO-MUNDO. Todavia, não é o conhecimento quem cria pela primeira vez um “commercium” do sujeito com um mundo e nem este commercium surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo da presença [Dasein] fundado no SER-NO-MUNDO. É por isso também que, como constituição fundamental, o SER-NO-MUNDO requer uma interpretação preliminar. [109] STMSCC: §13
Em primeiro lugar, deve-se tornar visível o SER-NO-MUNDO no tocante ao momento estrutural “mundo”. O cumprimento desta tarefa parece tão fácil e trivial que sempre se acredita poder-se dela prescindir. O que poderia significar descrever o “mundo” como fenômeno? Seria deixar e fazer ver o que se mostra no “ente” dentro do mundo. O primeiro passo consistiria, então, em elencar tudo o que se dá no mundo: casas, árvores, homens, montes, estrelas. Podemos retratar a “configuração” desses entes e contar o que neles e com eles ocorre. Mas é evidente que tudo isso permanecerá um “ofício” pré-fenomenológico que, do ponto de vista fenomenológico, não pode ser relevante. A descrição fica presa aos entes. É ôntica. O que, porém, se procura é o ser. Em sentido fenomenológico, determinou-se a estrutura formal de “fenômeno” como o que se mostra enquanto ser e estrutura de ser. STMSCC: §14
“Mundanidade” é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo de SER-NO-MUNDO. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial da presença [Dasein]. Assim, a mundanidade já é em si mesma um existencial. Quando investigamos ontologicamente o “mundo”, não abandonamos, de forma nenhuma, o campo temático da analítica da presença [Dasein]. Do ponto de [111] vista ontológico, “mundo” não é determinação de um ente que a presença [Dasein] em sua essência não é. “Mundo” é um caráter da própria presença [Dasein]. Isto não exclui que o caminho de investigação do fenômeno “mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser. A tarefa de “descrição” fenomenológica do mundo é tão pouco clara que já a sua determinação suficiente exige esclarecimentos ontológicos essenciais. STMSCC: §14
Um passar de olhos pela ontologia tradicional mostrará que, junto com a ausência da constituição da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO, também se salta por cima do fenômeno da mundanidade. Em seu lugar, tenta-se interpretar o mundo a partir do ser de um ente intramundano e, ademais, de um ente intramundano não descoberto como tal, ou seja, a partir da natureza [NH: “natureza” aqui entendida kantianamente, no sentido da física moderna]. Entendida em sentido ontológico-categorial, a natureza é um caso limite do ser de um possível ente intramundano. A presença [Dasein] só pode descobrir o ente como natureza num determinado modo de seu SER-NO-MUNDO. Esse conhecimento tem o caráter de uma determinada desmundanização do mundo. Enquanto conjunto categorial das estruturas de ser de um ente determinado, que vem ao encontro dentro do mundo, a “natureza” nunca poderá tornar [NH: mas o contrário!] compreensível a mundanidade. Do mesmo modo, o fenômeno “natureza”, no sentido do conceito romântico de natureza, só poderá ser apreendido ontologicamente a partir do conceito de mundo, ou seja, através da analítica da presença [Dasein]. STMSCC: §14
As indicações metodológicas já foram assim apresentadas. O SER-NO-MUNDO e com isso também o mundo deve tornar-se tema da analítica no horizonte da cotidianidade mediana enquanto modo de ser mais próximo da presença [Dasein]. Para se ver o mundo é, pois, necessário visualizar o SER-NO-MUNDO cotidiano em sua sustentação fenomenal. STMSCC: §14
O mundo mais próximo da presença [Dasein] cotidiana é o mundo circundante . Para se chegar à ideia de mundanidade, a investigação seguirá o caminho que parte desse caráter existencial do SER-NO-MUNDO mediano. Passando por uma interpretação ontológica dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo circundante, poderemos buscar a mundanidade do mundo circundante (circumundanidade). A expressão mundo circundante aponta no “circundante” para uma espacialidade. O “circundar”, constitutivo do mundo circundante, não possui, de maneira nenhuma, um sentido primordialmente “espacial”. O caráter espacial que pertence indiscutivelmente ao mundo circundante há de ser esclarecido, ao contrário, a partir da estrutura da mundanidade. Somente a partir daí poder-se-á ver o fenômeno da espacialidade da presença [Dasein], esboçado no §12. Ora, a ontologia tentou justamente interpretar o ser do “mundo” como res extensa, partindo da espacialidade. É em Descartes que se mostra a tendência mais extremada para uma ontologia do “mundo” desta espécie, ontologia edificada em contraposição à res cogitans que, porém, não coincide, nem do ponto de vista ôntico, nem do ontológico, com a presença [Dasein]. Pode-se esclarecer a análise da mundanidade aqui tentada, distinguindo-a desta tendência ontológica cartesiana. É o que se haverá de cumprir em três etapas: A. Análise da mundanidade circundante e da mundanidade em geral. B. Esclarecimento da análise da mundanidade por contraposição à ontologia do “mundo” de Descartes. C. O circundante do mundo circundante e a “espacialidade” da presença [Dasein]. STMSCC: §14
A demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos faz-se pelo fio condutor do SER-NO-MUNDO cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo e com o ente intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecer meramente perceptivo [114] e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um “conhecimento” próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. Para se assegurar a visão aqui exigida, faz-se necessária uma observação metodológica preliminar. STMSCC: §15
O modo de ser desse ente é a manualidade. Não se pode compreendê-la, porém, como mero caráter de apreensão [NH: mas na verdade somente caráter de encontro], como se tais “aspectos” fossem impostos numa fala ao “ente” que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Uma interpretação assim orientada desconsidera que, para tanto, o ente deveria ser previamente compreendido como algo pura e simplesmente dado e que, em decorrência, um modo de lidar com o “mundo” que o descobre e dele se apropria passa a ter primado e autoridade. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento que demonstramos como modo fundado do SER-NO-MUNDO. Esse SER-NO-MUNDO só chega a explicitar o que é simplesmente dado, através do que está à mão na ocupação. Manualidade é a determinação categorial dos entes tais como são “em si”. Todavia, a manualidade apenas se dá com base em algo simplesmente dado. Admitindo-se essa tese, seguir-se-ia, então, que a manualidade está fundada ontologicamente no ser simplesmente dado? STMSCC: §15
O mundo ele mesmo não é um ente intramundano, embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano só possa mostrar-se porque mundo “se dá” . Como, porém, “dá-se” mundo? Se a presença [Dasein] se constitui onticamente pelo SER-NO-MUNDO e se também pertence essencialmente ao seu ser uma compreensão do ser de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica, que pudesse dispensar uma visão ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o SER-NO-MUNDO que se acha na ocupação do ente intramundano, ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse fenômeno sempre se apresenta numa visão pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal visão, mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença [Dasein], no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento manual, não possui uma possibilidade ontológica em que, de certo modo, a mundanidade se lhe evidencia junto com o ente intramundano da ocupação? STMSCC: §16
À cotidianidade de SER-NO-MUNDO pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente à mão pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui à mão. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. [121] A surpresa proporciona o instrumento num determinado modo de não estar à mão. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro ser simplesmente dado anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse ser simplesmente dado do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSCC: §16
Segundo a interpretação feita até aqui, SER-NO-MUNDO significa: empenhar-se de maneira não temática, guiando-se pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental. A ocupação já é o que é, com base numa familiaridade com o mundo. Nessa familiaridade, a presença [Dasein] pode perder-se e ser absorvida pelo ente intramundano que vem ao seu encontro. O que é isso com que a presença [Dasein] se familiariza e por que a determinação mundana dos entes intramundanos pode aparecer? Como se deve compreender mais precisamente a totalidade referencial em que se “move” a circunvisão e cujas possíveis quebras impõem o ser simplesmente dado dos entes? STMSCC: §16
O que diz a ação de mostrar de um sinal? A resposta só é possível, determinando-se o modo de lidar adequado com o instrumento-sinal. Para isso, deve ser também possível apreender, de modo genuíno, a sua manualidade. Qual a maneira adequada de tratar com sinais? Seguindo a orientação do exemplo mencionado (seta), deve-se dizer: o comportamento correspondente (ser) aos sinais encontrados é o “desvio” ou o “ficar parado” diante do veículo que se aproxima com uma seta acionada. O desviar-se, enquanto tomada de uma direção, pertence essencialmente ao SER-NO-MUNDO da presença [Dasein]. Ela sempre está, de algum modo, a caminho e numa direção; ficar e parar são apenas casos limites desse “estar a caminho” direcionado. [128] O sinal se dirige a um SER-NO-MUNDO especificamente espacial. Propriamente, não “apreendemos” o sinal quando somente o olhamos e constatamos ser ele uma coisa que mostra. Mesmo quando seguimos com os olhos a direção mostrada pela seta e vemos algo simplesmente dado no sentido em que aponta a seta, também não nos encontramos, em sentido próprio, com o sinal. Ele se volta para a circunvisão do modo de lidar da ocupação e isso de tal maneira que a circunvisão, seguindo-lhe a indicação, dá uma “visão panorâmica” explícita de cada envergadura do mundo circundante. A visão panorâmica da circunvisão não apreende o que está à mão; ao contrário, ela recebe uma orientação no mundo circundante. Uma outra possibilidade da experiência do instrumento consiste na seta se apresentar como um instrumento pertencente ao veículo; com isso, não é preciso que se tenha descoberto o caráter instrumental específico da seta, podendo permanecer inteiramente indeterminado o que e como ele mostra e, apesar disso, o que assim vem ao encontro não é uma simples coisa. Ao contrário da constatação imediata de uma multiplicidade indeterminada de instrumentos, a experiência de uma coisa exige a sua determinação própria. STMSCC: §17
Poder-se-ia ficar tentado a ilustrar o papel primordial do sinal na ocupação cotidiana para a própria compreensão do mundo com o uso abundante de “sinais”, característico da presença [Dasein] primitiva, ou seja, com o fetiche e a magia. Decerto, a criação de sinais à base desse tipo de uso de sinais não se faz segundo uma intenção teórica nem através de uma especulação teórica. O uso de sinais permanece inteiramente no âmbito de um SER-NO-MUNDO “imediato”. Num exame mais minucioso, porém, torna-se claro que a interpretação de fetiche e magia feita pela ideia de sinal não é, de modo algum, suficiente para apreender o modo de “estar à mão” dos entes que vêm ao encontro no mundo primitivo. No que concerne ao fenômeno do sinal, poder-se-ia fazer a seguinte interpretação: para o homem primitivo, o sinal e o assinalado coincidem. O próprio sinal pode representar o assinalado não somente no sentido de substituí-lo, mas, sobretudo, no sentido de que o próprio sinal é sempre o assinalado. Essa estranha coincidência de sinal e assinalado não reside, contudo, em a coisa sinal já ter feito a experiência de uma certa “objetivação”, sendo experimentada como pura coisa e, desse modo, transferida com o assinalado para o mesmo âmbito ontológico do simplesmente dado. A “coincidência” não é identificação do que antes estava isolado mas um sinal que ainda-não-está-livre do designado. Esse uso de sinal desaparece inteiramente em ser para o assinalado, a ponto de ainda não se poder separar um sinal como tal. A coincidência não se funda numa primeira objetivação mas na total falta de objetivação. Isso significa, no entanto, que os sinais não foram descobertos como instrumento e que, por fim, o “manual” intramundano ainda não possui de forma alguma o modo de ser do instrumento. Presumivelmente, esse diapasão ontológico (manualidade e instrumento), bem como a ontologia da coisalidade, não podem contribuir em nada para uma interpretação do mundo primitivo. Se, no entanto, uma compreensão de ser é constitutiva da presença [Dasein] primitiva e do mundo primitivo em geral, então torna-se ainda mais urgente a elaboração da ideia “formal” de mundanidade, ou seja, de um fenômeno que é de tal maneira passível de modificações que todos os enunciados ontológicos, seja no contexto fenomenal prefixado do que ainda não é isso ou do que já não é mais isso, recebam um sentido fenomenal positivo a partir do que não é. STMSCC: §17
Mas o que significa dizer que a perspectiva para a qual se libera, pela primeira vez, o ente intramundano deve estar previamente aberta? Ao ser da presença [Dasein] pertence uma compreensão de ser. Compreensão tem o seu ser num compreender. Se convém essencialmente à presença [Dasein] o modo de SER-NO-MUNDO, é que compreender SER-NO-MUNDO pertence ao teor essencial de sua compreensão de ser. A abertura prévia da perspectiva, em que acontece a liberação dos entes intramundanos que vêm ao encontro, nada mais é do que o compreender de mundo com que a presença [Dasein], enquanto ente, já está sempre em relação. STMSCC: §18
O deixar e fazer previamente junto… com… funda-se num compreender de algo como deixar e fazer em conjunto, numa compreensão de ser e estar junto e de estar com de uma conjuntura. Isso e o que lhe subjaz mais remotamente como o ser para isso, em cuja conjuntura se dá o em virtude de para onde retorna, em última instância, todo para quê (Wozu), tudo isso já deve estar previamente aberto numa compreensibilidade. Mas em que a presença [Dasein] se compreende pré-ontologicamente como SER-NO-MUNDO? Ao compreender o contexto de remissões supramencionado, a presença [Dasein] já se referiu a um ser para, a partir de um poder ser explícito ou implícito, próprio ou impróprio, em virtude do qual ela mesma é. Assim, delineia-se um ser para isso, como possível estar junto de um deixar e [136] fazer em conjunto, o qual estruturalmente deixa e faz entrar junto com alguma coisa. A partir de um em virtude de, a presença [Dasein] sempre se refere ao estar com de uma conjuntura, ou seja, já permite sempre, em sendo, que o ente venha ao encontro como manual. A perspectiva dentro da qual se deixa e se faz o encontro prévio dos entes constitui o contexto em que a presença [Dasein] se compreende previamente segundo o modo de referência. O fenômeno do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura. A estrutura da perspectiva em que a presença [Dasein] se refere constitui a mundanidade do mundo. STMSCC: §18
O compreender, que a seguir será analisado mais profundamente (cf. §31), contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas. Detendo-se nessa familiaridade, o compreender atém-se a estas remissões como o contexto em que se movem as suas referências. O próprio compreender se deixa referenciar nessas e para essas remissões. Apreendemos o caráter de remissão dessas remissões de referência como ação de signi-ficar . Na familiaridade com essas remissões, a presença [Dasein] “significa” para si mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser a si mesma para uma compreensão originária, no tocante ao SER-NO-MUNDO. O em virtude de significa um ser para, este um ser para isso, esse um estar junto em que se [137] deixa e faz em conjunto, esse um estar com da conjuntura. Essas remissões estão acopladas entre si como totalidade originária. Elas são o que são enquanto ação de signi-ficar (Be-deuten), onde a própria presença [Dasein] se dá a compreender previamente a si mesma no seu SER-NO-MUNDO. Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar (Bedeuten). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença [Dasein] [NH: a presença [Dasein] em que o homem vigora] já é sempre como é. Em sua familiaridade com a significância, a presença [Dasein] é a condição ôntica de possibilidade para se poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura (manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença [Dasein] como tal é sempre esta presença [Dasein] com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais. Sendo, a presença [Dasein] já se [NH: mas não como uma ação e feito, dotados de eu, de um sujeito. Mas, presença [Dasein] e ser.] referiu a um “mundo” que lhe vem ao encontro, pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade. STMSCC: §18
A abertura da significância como constituição existencial da presença [Dasein], o SER-NO-MUNDO, é a condição ôntica da possibilidade de se descobrir uma totalidade conjuntural. STMSCC: §18
No âmbito do presente campo de investigação, as diferenças repetidas vezes marcadas entre as estruturas e dimensões da problemática ontológica devem-se manter fundamentalmente separadas: 1) o ser dos entes intramundanos, que primeiro vêm ao encontro (manualidade); 2) o ser dos entes (ser simplesmente dado) que se acham e se podem determinar num percurso autônomo de descoberta através dos entes que primeiro vêm ao encontro; 3) o ser da condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade [NH: melhor, a vigência do mundo] do mundo. Este último é uma determinação [138] existencial do SER-NO-MUNDO, ou seja, da presença [Dasein]. Os outros dois conceitos de ser são categorias e abrangem entes que não possuem o modo de ser da presença [Dasein]. Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão “simples” como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas “relações” e “relatas” do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse “sistema de relações” constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu “em-si substancial”. E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste ser simplesmente dado é que se podem determinar matematicamente “propriedades” desses entes em “conceitos de funções”. Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. STMSCC: §18
A ideia de ser como constância do ser simplesmente dado motiva não apenas uma determinação extremada do ser dos entes intramundanos e de sua identificação com o mundo em geral, como também impede que se perceba, de maneira ontologicamente adequada, os comportamentos da presença [Dasein]. com isso veda-se completamente o caminho para se ver o caráter fundado de toda percepção sensível e intelectual e para compreendê-las como uma possibilidade do SER-NO-MUNDO. Descartes, no entanto, apreende o ser da “presença [Dasein]”, a cuja constituição fundamental pertence o SER-NO-MUNDO, da mesma maneira que o ser da res extensa, isto é, como substância. STMSCC: §21
No contexto de uma primeira caracterização do ser-em (cf. §12), a presença [Dasein] teve de ser delimitada frente a um modo de ser no espaço, que denominamos interioridade. Esta significa: um ser constituído em si mesmo pela extensão está cercado pelos limites extensos de alguma coisa extensa. O ente interior e a cerca são ambos simplesmente dados no espaço. A recusa de uma tal interioridade da presença [Dasein] num continente espacial não significa, contudo, excluir em princípio toda espacialidade da presença [Dasein]. Trata-se apenas de deixar livre o caminho para se perceber a espacialidade essencial da presença [Dasein]. É esta agora que deve ser explicitada. Como, porém, o ente intramundano está igualmente no espaço, também a sua essa espacialidade acha-se [NH: portanto, mundo é também espacial] numa ligação ontológica com o mundo. Por isso, deve-se determinar em que sentido o espaço é um constitutivo do mundo que, por sua vez, foi caracterizado como momento estrutural de SER-NO-MUNDO. De modo especial, há de se mostrar como o circundante do mundo circundante, a espacialidade específica do próprio ente que vem ao encontro no mundo circundante, funda-se na mundanidade do mundo e não o contrário, isto é, que o mundo seria simplesmente dado no espaço. A investigação da espacialidade da presença [Dasein] e da determinação espacial do mundo parte de uma análise do manual intramundano no espaço. Essa consideração percorre três etapas: 1. A espacialidade do manual intramundano (§22); 2. A espacialidade do SER-NO-MUNDO (§23); 3. A espacialidade da presença [Dasein] e o espaço (§24). STMSCC: §21
Regiões não se formam a partir de coisas simplesmente dadas em conjunto, mas estão sempre à mão nos vários lugares específicos. Os próprios lugares dependem dos entes que se acham à mão na circunvisão da ocupação ou que, como tais, são encontrados. O que constantemente está à mão não tem um lugar, pois é previamente levado em conta pelo SER-NO-MUNDO da circunvisão. O onde de sua manualidade é levado em conta na ocupação e se orienta [156] para os demais entes à mão. Assim, por exemplo, o sol cuja luz e calor são usados cotidianamente possui seus lugares marcados e descobertos pela circunvisão, a partir da possibilidade de emprego variável daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os lugares deste manual em contínua mudança, e não obstante uniforme, tornam-se “indicações” privilegiadas de suas regiões. Esses pontos cardeais, que ainda não precisam ter um sentido geográfico, proporcionam previamente o para onde de todo delineamento ulterior de qualquer região que possa vir a ser ocupada por lugares. A casa tem o seu lado do sol e o seu lado da ventilação; por ele se orienta a distribuição dos “cômodos” e nestes, novamente, a “instalação” de acordo com o seu caráter instrumental. Igrejas e sepulturas, por exemplo, são situadas segundo o nascente e o poente, regiões da vida e da morte, a partir das quais a própria presença [Dasein] se determina no tocante às suas possibilidades mais próprias de SER-NO-MUNDO. A ocupação da presença [Dasein] que, sendo, está em jogo seu próprio ser, descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em jogo uma conjuntura decisiva. A descoberta prévia das regiões também se determina pela totalidade conjuntural em que se libera o manual enquanto aquilo que vem ao encontro. STMSCC: §22
A manualidade prévia de cada região possui um sentido ainda mais originário do que o ser do manual, a saber, o caráter de familiaridade que não causa surpresa. Ela mesma só se torna visível no modo da surpresa, numa descoberta do que está à mão, guiada pela circunvisão segundo os modos deficientes de ocupação. A região do lugar, muitas vezes, torna-se explicitamente acessível como tal pela primeira vez quando alguma coisa não se encontra em seu lugar. O espaço que, no SER-NO-MUNDO da circunvisão, descobre-se como espacialidade do todo instrumental, pertence sempre ao próprio ente como o seu lugar. O mero espaço ainda se acha velado. O espaço está fragmentado [NH: não, justamente uma unidade dos locais, especial e não fragmentada] em lugares. Essa espacialidade, no entanto, dispõe de sua própria unidade através da totalidade conjuntural mundana do que está à mão no espaço. O “mundo circundante” não se orienta num espaço previamente dado, mas a sua manualidade específica articula, na significância, o contexto conjuntural de uma totalidade específica de lugares referidos à circunvisão. Cada mundo sempre descobre a espacialidade do espaço que lhe pertence. Do ponto de vista ôntico, a possibilidade de encontro com um manual em seu espaço circundante só é possível porque a própria presença [Dasein] é “espacial”, no tocante a seu SER-NO-MUNDO. STMSCC: §22
§23. A espacialidade do SER-NO-MUNDO STMSCC: §23
Quando, em suas ocupações, a presença [Dasein] aproxima de si alguma coisa, isto não significa que a tenha fixado numa posição do espaço que possua o menor intervalo de algum ponto do seu corpo. Aproximar significa: na periferia do que está imediatamente à mão numa circunvisão. A aproximação não se orienta pela coisa-eu dotada de corpo, mas pelo SER-NO-MUNDO da ocupação, isto é, pelo que sempre vem ao encontro imediatamente no SER-NO-MUNDO. A espacialidade da presença [Dasein] também não se determina, indicando-se a posição em que uma coisa corpórea é simplesmente dada. Sem dúvida, também dizemos que a presença [Dasein] sempre ocupa um lugar. Este “ocupar”, no entanto, deve ser em princípio distinto do estar à mão num lugar, dentro de uma região. Ocupar um lugar deve ser concebido como distanciar o manual do mundo circundante dentro de uma região previamente descoberta numa circunvisão. A presença [Dasein] compreende o aqui a partir de um lá do mundo circundante. O aqui não indica o [161] onde de algo simplesmente dado, mas o estar junto de um ser que produz simultaneamente com esse dis-tanciamento. De acordo com sua espacialidade, a presença [Dasein], numa primeira aproximada, nunca esta aqui, mas sempre lá, de onde retorna para aqui. Todavia, tudo isso apenas se dá no modo em que a presença [Dasein] interpreta o seu ser-para… das ocupações a partir do que lá está a mão. É o que se torna totalmente claro pela particularidade fenomenal inerente a estrutura do dis-tanciamento, própria do ser-em. STMSCC: §23
Como SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] se mantém essencialmente num distanciar. A presença [Dasein] nunca pode cruzar esse dis-tanciamento, a distância em que o manual está de si mesmo. A distância de um manual pode, sem dúvida, ser constatada pela presença [Dasein] como intervalo quando, por exemplo, se determina a distância com relação a uma coisa que se pensa dada simplesmente num lugar que antes a presença [Dasein] havia ocupado. Este entre do intervalo só poderá ser atravessado posteriormente pela presença [Dasein] na condição de o próprio intervalo tornar-se distante. A presença [Dasein] não cruza de forma alguma o seu dis-tanciamento e isso a tal ponto que o leva consigo constantemente, pois a presença [Dasein] é essencialmente dis-tanciamento, ou seja, é espacial. A presença [Dasein] não pode percorrer a periferia de seus dis-tanciamentos. Ela pode apenas transformá-los. Espacial, a presença [Dasein] existe segundo o modo da descoberta do espaço inerente a circunvisão, no sentido de se relacionar num continuo distanciamento com os entes que lhe vêm ao encontro no espaço. STMSCC: §23
Em seu ser-em, que instala dis-tanciamento, a presença [Dasein] também possui o caráter de direcionamento. Toda aproximação toma antecipadamente uma direção dentro de uma região, a partir da qual o dis-tanciado se aproxima para poder ser encontrado em seu lugar. A ocupação exercida na circunvisão é um distanciamento direcional. Nessa ocupação, isto é, no SER-NO-MUNDO da própria presença [Dasein], já se dá previamente a necessidade de “sinais”; é esse instrumento que assume a indicação explicita e facilmente manuseável das direções. E ele que mantém expressamente abertas as regiões utilizadas na circunvisão, cada destino do pertencer, do encaminhar-se, do ir buscar e levar. Sendo, a presença [Dasein], na qualidade de um ser que distancia e se direciona, possui um regido já desde sempre descoberta. Assim como o dis-tanciamento, o direcionamento [162] direcionamento é conduzido, previamente, como modo de SER-NO-MUNDO pela circunvisão da ocupação. STMSCC: §23
Deve-se, porém, considerar que o direcionamento próprio do distanciamento funda-se no SER-NO-MUNDO. Assim, a direita e a esquerda não são coisas “subjetivas” das quais o sujeito possui uma sensação, mas sim direções do direcionamento, dentro de um mundo já sempre à mão. “Pelo puro sentimento da diferença de meus dois lados”, nunca poderia localizar-me corretamente no mundo. O sujeito com “puros sentimentos” desta diferença é um ponto de partida construtivo que desconsidera a verdadeira constituição do sujeito, a saber, que para poder orientar-se, a presença [Dasein] já está e já deve estar num mundo junto com esse “puro sentimento”. É o que aparece claramente no exemplo com que Kant tenta esclarecer o fenômeno da orientação. STMSCC: §23
Suponha-se que eu entre num quarto conhecido mas escuro que, durante minha ausência, foi rearrumado de tal maneira que tudo que estava à direita esteja agora à esquerda. Para me orientar, de nada serve o “puro sentimento da diferença” de meus dois lados, enquanto não tiver tocado um determinado objeto, diz Kant, [163] “cuja posição tenho na memória”. O que isto significa sendo que eu me oriento necessariamente num mundo e a partir de um mundo já “conhecido”? O conjunto inst