Com as costas viradas para a parede, alguém emite o seguinte enunciado verdadeiro: “O quadro na parede está torto”. O enunciado se verifica quando ele se vira e percebe o quadro torto na parede. O que nessa verificação é verificado? Qual o sentido da confirmação desse enunciado? Será que se constata uma concordância do conhecimento ou do conhecido com a coisa na parede? Sim e não, conforme se interprete fenomenalmente o que diz a expressão “o conhecido”. A que remete o emissor do enunciado quando ele sem perceber, mas “apenas representando” – julga? Será que remete a “representações”? Certamente não, se representação for tomada como processo psíquico. Também não remete a representações no sentido do representado, ou seja, de uma “imagem” da coisa real na parede. Segundo o seu sentido mais próprio, o enunciado que “apenas representa” remete ao quadro real na parede. É a ele que se visa e não a outra coisa. Toda interpretação que introduzisse aqui alguma outra coisa, que deveria estar implicada no enunciado que apenas representa, falsificaria o conteúdo fenomenal a respeito do qual se propõe um enunciado. O enunciado é um ser para a própria coisa que é. O que se verifica através da percepção? Somente que é o próprio ente que se visava no enunciado. Alcança-se a confirmação de que o ser que enuncia é para o que está sendo enunciado o mostrar de um ente. Confirma-se que ele descobre o ente para o qual ele é. Verifica-se o SER-DESCOBRIDOR do enunciado. Cumprindo a verificação, o conhecimento remete unicamente ao próprio ente. É sobre ele próprio que reincide a confirmação. O próprio ente visado mostra-se assim como ele é em si mesmo, ou seja, que, em si mesmo, ele é assim como se mostra e descobre sendo no enunciado. Não se comparam representações entre si nem com relação à coisa real. O que se deve verificar não é uma concordância entre conhecimento e objeto e muito menos entre algo psíquico e algo físico. Também não se trata de uma concordância entre vários “conteúdos da consciência” (Bewusstsein). O que se deve verificar é unicamente o ser e estar descoberto do próprio ente, o ente na modalidade de sua descoberta. Isso se confirma uma vez que o enunciado, isto é, o ente em si mesmo, mostra-se como o mesmo. Confirmação significa: que o ente se mostra em si mesmo. A verificação cumpre-se com base num mostrar-se dos entes. Isso só é possível porque, enquanto enunciado e confirmação, o conhecimento é, segundo seu sentido ontológico, um ser que, descobrindo, realiza seu ser para o próprio ente real. STMS: §44
O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, “deixa ver” (apophansis) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de SER-DESCOBRIDOR. A verdade não possui, portanto, a estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequação entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto). STMS: §44
Enquanto SER-DESCOBRIDOR, o ser-verdadeiro só é, pois, ontologicamente possível com base no ser-no-mundo. Esse fenômeno, em que reconhecemos uma constituição fundamental da presença (Dasein), constitui o fundamento do fenômeno originário da verdade. É o que agora se vai perseguir mais profundamente. STMS: §44
Ser-verdadeiro (verdade) diz SER-DESCOBRIDOR. Mas não será esta uma definição extremamente arbitrária da verdade? Com determinações conceituais tão violentas talvez se consiga desvincular a ideia de concordância do conceito de verdade. Esse sucesso duvidoso não estaria pagando o preço de condenar a antiga e “boa” tradição a um nada negativo? A definição aparentemente arbitrária, contudo, apenas traz uma interpretação necessária daquilo que a tradição mais antiga da filosofia pressentiu de maneira originária e chegou a compreender pré-fenomenologicamente. O ser-verdadeiro do logos enquanto apophansis é aletheuein, no modo de apophainesthai: deixar e fazer ver (descoberta) o ente em seu desencobrimento, retirando-o do encobrimento. A aletheia, identificada por Aristóteles nas passagens supracitadas com pragma, phainomena, indica as “coisas elas mesmas”, o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta. Será por acaso que num dos fragmentos de Heráclito, que constituem os ensinamentos mais antigos da filosofia em que o logos é tratado expressamente, o fenômeno da verdade acima apresentado transpareça no sentido de descoberta (desencobrimento)? Contrapõem-se ao logos e a quem o diz e compreende aqueles que não compreendem. O logos é phrazon okos echei, ele diz como o ente se comporta. Para aqueles que não compreendem, porém, lanthanei, o que eles fazem permanece encoberto; epilanthanontai, eles esquecem, isto é, o ente se lhes encobre novamente. Pertence, pois, ao logos o desencobrimento, aletheia. A tradução pela palavra verdade e, sobretudo, as determinações teóricas de seu conceito encobrem o sentido daquilo que os gregos, numa compreensão pré-filosófica, estabeleceram como fundamento “evidente” do uso terminológico de aletheia. STMS: §44
A “definição” de verdade como descoberta e SER-DESCOBRIDOR tampouco é mera explicação de palavras. Ela nasce da análise das atitudes da presença (Dasein), que costumamos chamar de “verdadeiras”. STMS: §44
Ser-verdadeiro enquanto SER-DESCOBRIDOR é um modo de ser da presença (Dasein). O que possibilita esse descobrir em si mesmo deve ser necessariamente considerado “verdadeiro”, num sentido ainda mais originário. Os fundamentos ontológico-existenciais do próprio descobrir é que mostram o fenômeno mais originário da verdade. STMS: §44
Descobrir é um modo de ser-no-mundo. A ocupação que se dá na circunvisão ou que se concentra na observação descobre entes intramundanos. São estes o que se descobre. São “verdadeiros” num duplo sentido. Primordialmente verdadeiro, isto é, exercendo a ação de descobrir, é a presença (Dasein). Num segundo sentido, a verdade não diz o SER-DESCOBRIDOR (o descobrimento) mas o ser-descoberto (descoberta). STMS: §44
O ser junto ao ente intramundano, a ocupação, é descobridor. A fala, porém, pertence essencialmente à abertura da presença (Dasein). A presença (Dasein) se pronuncia; se – enquanto SER-DESCOBRIDOR para o ente. É no enunciado que ela se pronuncia como tal sobre o ente descoberto. O enunciado comunica o ente no modo de sua descoberta. Na percepção, a presença (Dasein) que percebe essa comunicação traz a si mesma para o SER-DESCOBRIDOR com a referência ao ente discutido. Naquilo sobre o que o enunciado se pronuncia está contida a descoberta dos entes. A descoberta preserva-se no que se pronuncia. O que se pronuncia torna-se, por assim dizer, um manual intramundano que pode ser retomado e propagado. Por preservar a descoberta, o que se pronuncia e assim se acha à mão traz, em si mesmo, uma remissão ao ente sobre o qual todo enunciado se pronuncia. Descoberta é sempre descoberta de… Mesmo na repetição, a presença (Dasein) que repete chega a um ser para o próprio ente discutido. Contudo, ela é e se acredita dispensada de realizar originariamente o descobrimento. STMS: §44
O fenômeno existencial da descoberta, que se funda na abertura da presença (Dasein), transforma-se em propriedade simplesmente dada, que ainda guarda em si um caráter de relação e, como tal, torna-se uma relação simplesmente dada. Verdade como abertura e SER-DESCOBRIDOR, no tocante ao ente descoberto, transforma-se em verdade como concordância entre seres simplesmente dados dentro do mundo. Com isso, fica demonstrado o caráter ontologicamente derivado do conceito tradicional de verdade. STMS: §44
O que diz “pressupor”? Compreender alguma coisa como a base e o fundamento do ser de um outro ente. Essa compreensão dos entes em seus nexos ontológicos só é possível com base na abertura, ou seja, no SER-DESCOBRIDOR da presença (Dasein). Pressupor “verdade” significa, pois, compreendê-la como algo em virtude da qual a presença (Dasein) é. Presença, no entanto – e isso reside na constituição de ser como cura – já sempre antecedeu a si mesma. Ela é um ente em que, em seu ser, está em jogo o poder-ser mais próprio. A abertura e o descobrimento pertencem, de modo essencial, ao ser e ao poder-ser da presença (Dasein) como ser-no-mundo. Na presença (Dasein) está em jogo o seu poder-ser-no-mundo e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano. Na constituição de ser da presença (Dasein) como cura, no anteceder-a-si-mesma, reside o “pressupor” mais originário. Porque esse pressupor a si mesmo pertence ao ser da presença (Dasein), “nós” devemos pressupor também a “nós” como algo que se determina pela abertura. Esse “pressupor” radicado no ser da presença (Dasein) não se comporta com os entes não dotados do caráter de presença (Dasein), mas unicamente consigo mesmo. A verdade pressuposta, o “se dá”, pelo qual se deve determinar o seu ser, possui o modo e o sentido de ser da própria presença (Dasein). Devemos “fazer” a pressuposição de verdade porque ela já se “fez” com o ser do “nós”. STMS: §44