Ser “dá-se”, ao invés de “é”

(Beaini1981:21-24)

“Tudo o que é, todo ente, tem um ser. Pode-se assim falar do ser do homem, do animal, da planta, do mineral. Todos são; todos são entes. O que os faz ser entes não é, contudo, ele mesmo, um ente, mas o Ser. O que permite a todos os entes ser e ter um ser, seu ser é pois o Ser. (…) Sem ele, não poderíamos ter experiência de nenhum ente e, contudo, não é frequente que o tenhamos tematicamente em vista. O homem está disperso no ente ao ponto de aí perder-se e é por isto que ele não presta nenhuma atenção ao ser. Parece ao homem que é o ente que engendra o Ser.” 1

O homem cotidianamente só se interessa pelo ente, porque o ente é aquilo que está à sua vista, que aparece. O ser do ente não aparece, de ordinário, em si próprio. Contudo, o ser não se identifica com o ente, nem pode ser reduzido a ele.

O ser apresenta-se a nós, em uma primeira abordagem, como ser-do-ente. Isto porque o é pode ser aplicado inicialmente ao ente: uma árvore, um animal, o mundo; de onde podemos afirmar com toda a convicção que o ente é. O ser propriamente não é, ou seja, o ser não é, do mesmo modo que o ente. Contudo, o ser — que não é um ente — não se iguala ao vazio, enquanto é em si mesmo o fundamento (imperceptível sensivelmente) do ente. Assim, como podemos aplicar o é aos entes, de forma natural e até instintiva, através do pensar, poderemos atingir o âmbito onde o é se emprega prioritariamente ao ser.2 O ser é enquanto luz que des-vela o ente e dá a captá-lo.

Ex.: a mundaneidade do mundo, ou seja, a estrutura do mundo bíblico, do mundo romano, de todos os mundos, é o ser do mundo, válido para qualquer especificidade que este adquira, porque é a estrutura que faz o mundo ser mundo.

Na tradução do opúsculo de Heidegger, Da Experiência do Pensar, podemos notar como é aplica-se ao ente e ao ser:

“O que é, geralmente se aceita como ente. Pois do ente se diz que é. Porém agora tudo retrocedeu. (…) O que é, de modo algum é o ente. Pois do ente só se dá o ele é, e o é, quando o ente for abordado em relação do seu Ser. No é se pronuncia Ser; isto que no sentido é, que significa o Ser do ente, é o Ser.” 3

Contudo, convém que fique bem claro em que sentido aplicamos, aqui e no decorrer desta pesquisa, o é ao ser, ou seja, que o ser nunca é do mesmo modo como os entes são. O é diz-se propriamente do ser enquanto ser, do ser em si mesmo.

Para evitar confusões terminológicas, Heidegger, na conferência Tempo e Ser, 4 designa, para determinar o ser, o termo “dá-se” ao invés de “é”, deixando este último para definir o ente, sublinhando o fato de que o ser não é tomado como ser-do-ente, mas como o dom que se des-vela.

Ernildo Stein, ao comentar Heidegger, diz explicitamente:

“A experiência com a palavra indica aquilo, que se dá e que, contudo, não ‘é’.”5

Ou seja, o ser não é como o ente, enquanto não ocupa um lugar, não possui as características do ente, sendo que neste âmbito podemos dizer que o ser não é. Todavia, como empregamos aqui o é para designar o mesmo que Heidegger define como dá-se, ou seja, que o ser é enquanto des-vela-mento, presença, manteremos o termo é, ressaltando as menções feitas pelo autor em questão ao termo dá-se, cujo sentido e importância não ignoramos.

Heidegger nos mostra, também, que nos movemos cotidianamente em meio ao é, que nos defrontamos com ente e ser, sem contudo captar o significado deste último termo, ou perceber que o ser se faz presente de modo próprio e diferente daquele como se manifesta o ente.

“Nós não sabemos o que o ‘ser’ quer dizer. Mas desde que nos perguntamos ‘o que o ser é’, encontramo-nos já em uma certa compreensão do ‘é’, sem por isto poder fixar conceitualmente o que este ‘é’ significa. ( ..) Para a questão que desenvolvemos, o que é perguntado é o ser, isto é o que determina o ente como ente, aquilo a partir do qual o ente, de qualquer maneira que o tratemos, está sempre já compreendido. O ser do ente não ‘é’ ele mesmo um ente. (…) O ser, enquanto é o que é perguntado, reclama, pois, um modo de ‘mostração’ original, que se distingue essencialmente de todo modo de descoberta do ente.” 6

O ser se mostra enquanto mostra o ente, pois o ser é o que constitui o ente como ente, é o fundamento, o sentido do ente. É através do ser que conhecemos o ente como tal; por isso, o ser é mais importante que o ente. Mas o que é visto pelo homem é o ente, enquanto o ser nos dá a conhecê-lo, porém nunca o ser.

Se o ser se mostra através do ente, e não há ente sem ser, o caminho pelo qual acedemos ao ser é a partir do ente. O ser é a essência do ente que somos e de tudo o que é.

 

  1. De Waelhens e Walter Biemel, Introduction à la traduction française de l’opuscule de Martin Heidegger De l’essence de la vérité, Philosophes Contemporains, Textes et Études, Louvain, Nauwelaerts, Paris, Vrin, 1948, p. 19.[↩]
  2. Sobre o modo como o ser é, cf.: item 1 A do capítulo 2, item 1 do capítulo 3, itens 2 e 3 do capítulo 4.[↩]
  3. M. Heidegger, Da Experiência do Pensar (Aus der Erfahrung des Denkens), tradução, introdução e notas de Maria do Carmo Tavares de Miranda, Porto Alegre, Editora Globo, 1969, p. [↩]
  4. Cf.: M. Heidegger, “Tempo e Ser” (“Zeit und Sein”). In: O Fim da Filosofia ou A Questão do Pensamento, tradução de Ernildo Stein e revisão de José Geraldo Nogueira Moutinho, São Paulo, Duas Cidades, 1972, p. 42 ss.[↩]
  5. Ernildo Stein, Compreensão e Finitude; estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Tese de Livre-Docência, Porto Alegre, Ética Impressora, 1967, p. 225.[↩]
  6. M. Heidegger, L’Etre et le Temps (Sein und Zeit), traduit par Rudolf Boehms et Alphonse de Waelhens, Paris, Gallimard, 1965 p 21.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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