O fato de o ser ser determinado como fundamento é considerado até agora como a coisa mais natural; é, contudo, o mais problemático. Não é possível examinar aqui até onde se estende a determinação do ser como fundamento, sobre que repousa a essência do fundamento, Entretanto, mesmo a uma reflexão aparentemente exterior já se impõe a conjectura de que, na determinação kantiana do ser como posição, se esconde um parentesco com o que nós chamamos fundamento. Positio, ponere, quer dizer: pôr, colocar, dispor, estar disposto, estar pro-posto, estar posto como fundamento. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
De onde recebe “ser” o sentido de “somente posição”? A partir de que e como se define o sentido da expressão “pura posição”? Não permanece a explicação de ser como posição estranha, arbitrária até, de qualquer maneira plu ívoca e, por isso, imprecisa? MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Em cada caso, a caracterização de ser como posição manifesta uma plu ivocidade que não é acidental e que não nos é desconhecida. Pois ela tem seu papel importante no âmbito daquele pôr e colocar que conhecemos como representar. O vocabulário técnico da filosofia dispõe para isto de dois termos específicos: representar é percipere, perceptio, tomar algo a si, compreender; e: repraesentare, opor-se algo, presentear-se algo. No ato de representação representamo-nos algo de tal modo que se oponha a nós enquanto assim colocado (posto), enquanto objeto. Ser como posição indica a qualidade de ser posto de alguma coisa na representação que põe. Conforme o que e o modo como se põe a posição, a Setzung, o ser, possui um outro sentido. É por isso que Kant, depois de estabelecer sua tese sobre o ser, prossegue no texto da Crítica da Razão Pura: ‘No uso lógico, ele é [a saber, o ser enquanto “somente a posição] simplesmente a cópula de um juízo. A proposição: Deus é todo-poderoso contém dois conceitos que possuem seus objetos: Deus e a onipotência; a palavrinha é não é, ainda por cima, um predicado, mas somente aquilo que põe o predicado [acusativo] em relação com o sujeito”. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Ora bem, a questão de saber se e como e em que limites a proposição “Deus é como posição absoluta é possível tornar-se e permanece para Kant o aguilhão secreto que impulsiona todo pensamento da Crítica da Razão Pura e anima as principais obras que seguem. O fato de se falar do ser como posição absoluta, à diferença da posição relativa enquanto posição lógica, faz crer, é verdade, que nenhuma relação é posta na posição absoluta. Mas quando, no caso da posição absoluta, se trata do uso objetivo do ser, no sentido de existência e de ser-aí, então torna-se não somente claro para a reflexão critica, mas a ela se impõe a evidência de que, também aqui, é posta uma relação e que, por conseguinte, o “é” recebe o caráter de um predicado, ainda que não o de um predicado real. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
No uso lógico do ser (a e b) trata-se da posição da relação entre o sujeito da proposição e o predicado. No uso ôntico do ser – a pedra é (“existe”) -, trata-se da posição da relação entre o eu-sujeito e o objeto, isto, todavia, de tal maneira que a relação sujeito-predicado se intercala, por assim dizer, atravessada entre a relação sujeito-objeto. Isto implica: o “é” da cópula possui, no enunciado de um conhecimento objetivo, um sentido diferente e mais rico que o sentido puramente lógico. Entretanto, mostrar-se-á que Kant chega a esta convicção somente após longa reflexão, formulando-a mesmo apenas na segunda edição da Crítica da Razão Pura. Seis anos após a primeira edição foi ele capaz de dizer qual é a situação do “é”, isto é, do ser. Apenas a Crítica da Razão Pura traz plenitude e determinidade à explicação do ser como posição. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
No desenvolvimento da Crítica não é abandonada nem a determinação do ser como posição, nem, muito menos, em geral o conceito de ser. É por isso que se pode dizer que é um erro do neokantismo, cujas conseqüências ainda hoje se fazem sentir, pensar que, pela filosofia de Kant, foi, como se diz, “liquidado” o conceito de ser. O sentido de ser (presença constante) que impera desde a Antiguidade não apenas é mantido na explicação critica que Kant dá do ser como objetividade do objeto da experiência; ao contrário, através da determinação ‘objetividade’, ele se manifesta em uma forma excepcional, enquanto é justamente encoberto, e deformado até, através da explicação do ser como substancialidade da substância, explicação imperante na história da filosofia. Kant, entretanto, determina o “substancial” sempre no sentido da explicação critica do ser como objetividade: O elemento substancial não significa outra coisa “que o conceito de objeto em geral, o qual subsiste na medida em que nele se pensa somente o sujeito transcendental, sem quaisquer predicados” (A 414, B 441). MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Permita-se-nos afirmar aqui que procedemos muito bem, a compreender as palavras “ob-stante” e “ob-jeto”, na linguagem de Kant, literalmente, na medida em que nelas se recorda a relação com o eu-sujeito pensante, relação da qual o ser como posição recebe seu sentido. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Os princípios que “explicam” verdadeiramente as modalidades do ser se chamam, segundo Kant, “os postulados do pensamento empírico em geral”. Kant observa expressamente, no que concerne às “denominações” dos quatro grupos da “tábua dos princípios” (a saber, “axiomas da intuição”, “antecipações da percepção”, “analogias da experiência”, “postulados do pensamento empírico em geral’), que ele “os escolheu com cuidado para que se notem bem as diferenças que há entre a evidência e o exercício destes princípios” (A 161, B 200). Devemos restringir-nos agora à caracterização do quarto grupo, “os postulados”, e o fazemos com a única intenção de mostrar como nestes princípios se manifesta a ideia diretriz do ser como posição. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo fato de ser verdade o que Schelling aqui diz, não devemos pretender repensar, de modo adequado, este § 76. Permanecendo fiéis à intenção desta exposição, trata-se somente de fazer ver como Kant continua a manter, na afirmação sobre o ser a que nos referimos, a determinaçãochave do ser como posição. Kant diz: “’O fundamento’ da distinção, ‘necessária e inevitável para o entendimento humano’, entre a possibilidade e a atualidade das coisas, encontra-se no sujeito e na natureza de sua capacidade de conhecei”. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Kant realiza, entretanto, na determinação do ser ainda mais um passo e o realiza novamente apenas em alusões, de tal maneira que não se chega à exposição sistemática do ser como posição. Visto a partir da obra de Kant, isto não representa uma falha, porque as afirmações episódicas sobre o ser como posição fazem parte do estilo de sua obra. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
O caráter inevitável do passo mais avançado de Kant pode ser-nos esclarecido pela seguinte consideração. Kant designa suas enunciações sobre o ser “explicações” e “elucidações”. O papel de ambas é fazer ver clara e puramente o que ele entende por ser. Na medida em que determina o ser como “somente posição”, compreende ele o ser a partir de um lugar delimitado, a saber, a partir do pôr como ato da subjetividade humana, isto é, do entendimento humano condenado ao dado sensível. O reconduzir ao lugar é por nós designado a discussão (do lugar). O explicar se e o elucidar se fundamentam na discussão (do lugar). Com isto, porém, se fixa apenas o lugar, mas as ramificações que dele partem são ainda invisíveis, quer dizer, aquilo de onde ser como posição, a saber, a posição mesma, por sua vez, propriamente se determina. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
O “apêndice” confirma a segurança com a qual a Crítica da Razão Pura de Kant garante o conhecimento teorético do homem, em sua amplitude. Também aqui devemos contentar-nos com uma indicação que deverá simplesmente mostrar em que medida Kant esboça, neste “apêndice”, as linhas nas ramificações do lugar a que pertence o ser como posição. Na interpretação do ser como posição. Na interpretação do ser como posição está implicado que posição e caráter de ser posto do objeto são elucidados a partir das diferentes relações para com a força do conhecimento, isto é, através da relação que retorna a ela, da re-clinação, da reflexão. Se agora tomarmos em consideração estas diferentes relações reflexivas verdadeiramente enquanto tais e se as compararmos umas com as outras, então se toma manifesto que a interpretação destas relações da reflexão deve realizar-se segundo certos pontos de vista. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Na elucidação do ser-possível como posição entrou em jogo a relação com as condições formais da experiência e com isto o conceito de forma. Na elucidação dó ser-atual foram expressas as condições materiais da experiência e com isto o conceito de matéria. A elucidação das modalidades do ser como posição se realiza, de acordo com isto, na perspectiva da distinção de matéria e forma. Esta distinção faz parte das ramificações do lugar do ser como posição. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo fato de, com auxílio destes conceitos, se determinar a relação de reflexão, denominam-se eles conceitos da reflexão. Entretanto, o modo como os conceitos da reflexão são determinados também é uma reflexão. A mais avançada determinação do ser como posição realiza-se, para Kant, numa reflexão sobre a reflexão – portanto, num modo privilegiado de pensamento. Esta situação torna ainda mais legítimo o ato de concentrar a meditação de Kant sobre o ser sob a expressão: Ser e Pensar. A expressão parece falar sem ambigüidade. Nela se oculta, no entanto, coisa não esclarecida. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Já a simples enumeração dos conceitos da reflexão dá-nos indicação para uma compreensão mais radical da tese de Kant sobre o ser como posição. A posição mostra-se na estrutura de forma e matéria. Esta estrutura é interpretada como a distinção entre o ato de determinar e o determinável, isto é, em função da espontaneidade da ação do entendimento em relação com a receptividade da percepção sensível. O ser como posição é discutido e situado, quer dizer, colocado na estrutura da subjetividade humana enquanto lugar de sua origem essencial. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
O acesso à subjetividade é a reflexão. Na medida em que a reflexão, enquanto transcendental, não se dirige diretamente aos objetos, mas à relação da objetividade dos objetos com a subjetividade do sujeito, na medida, portanto, em que o tema da reflexão, por sua parte, enquanto a relação citada, já é uma relação que se volta ao eu pensante, mostra-se a reflexão através da qual Kant elucida e situa pela discussão o ser como posição, como uma reflexão sobre a reflexão, como um pensamento do pensamento relacionado com a percepção. A palavra-guia, já diversas vezes citada, que Kant utiliza para a interpretação do ser, a expressão ser e pensar, fala agora mais claramente em seu conteúdo mais rico. Entretanto, a expressão-guia permanece ainda obscura em seu sentido decisivo. Pois em sua versão formalista se oculta uma ambigüidade que deve ser meditada se a expressão ser e pensar não se deve limitar à caracterização da interpretação kantiana do ser, mas designar o traço fundamental que forma o movimento de toda a história da filosofia. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
Antes de, na conclusão, elucidarmos a referida ambigüidade, parece de utilidade mostrar, ainda que em grandes traços, como fala, na interpretação kantiana do ser como posição, a tradição. Já do primeiro texto de Kant, o Argumento, podemos concluir que a explicação do ser se efetua em função da existência, pelo fato de ser tema de consideração a “demonstração do ser-aí (existência) de Deus”. Em vez de “ser-ai’ diz a linguagem metafísica também existência. Basta lembrar esta palavra para reconhecer no sistere, no pôr, a ligação com o ponere e a posição; a exsistentia é o actus, quo res sistitur, ponitur extra statum possibilitatis (cf. Heidegger, Nietzsche, 1961, vol. 11, pág. 417 e ss.). MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
O pensamento deve perguntar: Que quer, pois, dizer ser quando se deixa determinar a partir da representação enquanto posição e caráter de ser posto? Esta é uma questão que Kant não mais levanta, tampouco as que seguem: Que significa, pois, ser se a posição se deixa determinar pela estrutura de forma e matéria? Que significa, pois, ser se, na determinação do caráter de ser posto do que foi posto, esta surge na dupla forma do sujeito, de um lado, como sujeito da proposição em sua relação com o predicado, de outro lado, como eu-sujeito na relação com o objeto? Que resignifica, pois, ser se se torna determinável a partir do subiectum, isto é, do hypokéimenon no grego? Este é aquilo que, já de antemão, jaz aí, porque é o constantemente presente. Pelo fato de ser ser determinado como presença, é o ente o que jaz hypokéimenon. A relação com o ente consiste no deixar que algo esteja aí enquanto maneira de pôr, ponere. Nisto está implícita a possibilidade do pôr e colocar. Porque ser se ilumina como presença, pode a relação com o ente, enquanto o que está aí, transformar-se em pôr, colocar, representar e propor. Na tese de Kant sobre o ser como posição, mas também em todo o âmbito de sua interpretação do ser do ente como objetividade e realidade objetiva, impera o ser no sentido da presença que dura. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER
No entanto, através da exposição da tese kantiana mostrou-se indiscutivelmente que ser como posição é determinado a partir da relação com o uso empírico do entendimento. O “e” na expressão-guia significa esta relação que, segundo Kant, tem uma raiz no pensamento, isto é, um ato do sujeito humano. MHeidegger: A TESE DE KANT SOBRE O SER