Schürmann (1982:309-313) – responsabilidade

destaque

O que seria um conceito não-metafísico e não-calculativo de responsabilidade? Deve ser um conceito que desconstrua a dívida de responsabilidade e a autoridade à qual ela é devida. A desconstrução da instância justificadora é a destituição dos princípios epocais. Heidegger delineia a desconstrução da essência calculadora com a ajuda de algumas etimologias. O verbo latino reor deu origem ao verbo alemão rechnen. Esta palavra, Heidegger não a entende no sentido vulgar de “contar”, “calcular”: “Ora, “orientar algo sobre outra coisa”, é esse o sentido do nosso verbo rechnen.” [Rechnen é richten, ausrichten, “orientar”. Do cálculo, estas considerações permitem-nos passar à direcionalidade. Os atos responsáveis são então aqueles que se enquadram na direção, no quadro de uma determinada economia. A direcionalidade é sublinhada pela palavra “sentido”: os atos responsáveis são aqueles que seguem a direção em que as coisas vão numa determinada época, que se alinham com a orientação das coisas à medida que entram no seu mundo.

O lugar da responsabilidade desconstruída já não é a liberdade moral, mas a economia da presença. Com este deslocamento, ser responsável já não significa responder pelas nossas ações perante uma autoridade, mas responder a: responder às constelações aleteiológicas em que os nossos atos se situam. Responsabilidade — responsividade talvez, ou respondância (répondance)? — para a qual o próprio pensamento já não pode responder; para a qual não se lhe pode pedir razões, porque então o deslocamento anti-humanista seria nulo e sem efeito. A responsabilidade, deslocada para as economias, significa resposta. Resposta a quê? Ao “apelo da diferença”, que é “a diferença entre mundo e coisa” (GA12). Uma resposta à modalidade sempre nova segundo a qual o mundo desdobra as coisas e segundo a qual as coisas dão configuração (gebärden) ao mundo. “Coisas: âmbito do mundo. O mundo: favor das coisas”. Resposta à sua “intimidade”, ao “entremeio onde mundo e coisa diferem”, ao acontecimento da sua constelação mútua. Uma resposta ao Ereignis, portanto, cuja estrutura de apelo já vimos. A essência responsorial da responsabilidade retira-a do domínio moral para a implantar no da linguagem: uma resposta à “injunção em que a diferença chama o mundo e as coisas”. Uma resposta ao acontecimento da apropriação que se articula no silêncio e que é “nada humano”. “Tal apropriação ocorre na medida em que o desdobramento essencial da linguagem, a reunião do silêncio, faz uso da fala mortal.” (GA12) Esta reimplantação topológica não faz, no entanto, da responsabilidade um fenómeno linguístico: apelo e resposta combinam-se num modo de ser. A “via para a palavra” designa um Unterwegs que não se limita nem à inteligência (não é um itinerarium mentis) nem ao indivíduo (não é uma conversio). O acontecimento de entrar na presença “usa” os homens, situando-os de tal modo que tudo o que empreenderem será uma resposta à economia que os encerra.

Christine-Marie Gros

original

  1. Cf. SvG 168/PR 219.[↩]
  2. Le logos «parvient dans la sphère d’interprétation du terme de traduction ratio (rheô, rhesis = discours, ratio; reor = énoncer, tenir pour…, justifier)» (N II 431/N ii 345). Cela n’est certes pas dire que le sens de λόγος comme «calcul» n’apparaisse qu’avec ce «revers de la métaphysique naissante» qu’est la traduction des mots fondamentaux grecs en termes latins. Sur le logizesthai comme «calculer», ci. H. Boeder, «Der frühgriechische Wortgebrauch…», loc. cit., p. 108s.[↩]
  3. Karl Marx, «Die deutsche Ideologie», in Frühe Schriften, op. cit., t. II, p. 306, où il parle de la «Benthamschen Buchführung ».[↩]
  4. «Eine doppelte Buchführung» (US 210/AP 195). O. Pöggeler remarque très à propos : « Ce qui est précisément en question, c’est de savoir si la charge de responsabilité n’a pas été comprise, elle aussi, et depuis longtemps, dans un sens purement technologique et tactique», « Hermeneutische und mantische Phänomenologie», in Heidegger, éd. O. Pöggeler, op. cit., p. 333.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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