Scheler (MSNS) – um homem só pode pensar seus próprios pensamentos?

Qual é o significado da proposição de que “um homem só pode pensar seus próprios pensamentos e sentir seus próprios sentimentos”? O que há de “evidente” nela? Apenas que, se postularmos um substrato real para as experiências, de qualquer tipo, que eu possa ter, então todos os pensamentos e sentimentos que ocorrem em mim pertencerão, de fato, a esse substrato real. E isso é uma tautologia. Dois substratos reais, duas substâncias-alma, por exemplo, ou dois cérebros, certamente não podem entrar um no outro, ou mudar de um para o outro. Mas, por enquanto, deixemos de lado essas hipóteses metafísicas questionáveis. Entretanto, se abandonarmos seriamente essas e todas as pressuposições do realismo em geral e nos atermos à fenomenologia pura, nossa proposição perderá toda a aparência de ser “autoevidente”. Pois nada é mais certo do que o fato de que podemos pensar os pensamentos dos outros assim como os nossos próprios, e podemos sentir seus sentimentos (em simpatia) como sentimos os nossos. Não estamos sempre distinguindo “nossos próprios” pensamentos daqueles que lemos ou que nos foram contados? Nossos “próprios” sentimentos daqueles que meramente reproduzimos ou pelos quais fomos contagiados (inconscientemente, como percebemos mais tarde)? A “nossa própria” vontade em relação àquela que meramente obedecemos e que é claramente manifestada para nós no momento como a vontade de outra pessoa, assim como distinguimos nossa própria vontade verdadeira daquela que somos enganados a pensar que é nossa, embora tenha sido sugerida a nós por outra pessoa, em hipnose, por exemplo? Mesmo nesses exemplos muito triviais, encontramos uma série de casos “possíveis” do que se supõe, com base nas suposições atuais, ser “evidentemente” impossível. É bem possível que nossos pensamentos sejam apresentados “como” nossos e os dos outros como deles, por exemplo, na mera compreensão de uma informação. Esse é o caso normal. Mas também pode acontecer que o pensamento de outra pessoa não seja apresentado como tal, mas como um pensamento nosso. Esse é o caso, por exemplo, da “reminiscência inconsciente” de coisas lidas ou comunicadas. Isso também ocorre quando, imbuídos de uma tradição genuína, aceitamos os pensamentos de outras pessoas, por exemplo, de nossos pais ou professores, como nossos próprios pensamentos: então, “reproduzimos” esses pensamentos (ou sentimentos) de forma vicária, sem estarmos explicitamente conscientes da função de reprodução intelectual ou emocional. E, portanto, eles aparecem para nós como se fossem nossos. Também pode acontecer que um de nossos próprios pensamentos ou sentimentos seja apresentado como pertencente a outra pessoa. Assim, os escritores medievais muitas vezes liam seus próprios pensamentos ou os de seu próprio tempo nas fontes e nos documentos da antiguidade clássica, criando, assim, modos de pensamento cristãos sobre Aristóteles, por exemplo. Enquanto a tendência nos tempos modernos tem sido pegar ideias que foram inconscientemente adquiridas e pensadas milhares de vezes e apresentá-las como novas e originais, o hábito mais antigo (medieval) era extrair ideias que de fato eram novas e originais de autores investidos de autoridade especial. O último representa o caso de “empatia ilusória”. Pelo simples fato de o processo de empatia não ser explícito aqui, a experiência do indivíduo parece ter sido derivada de outra pessoa.

É possível, portanto, como mostram esses exemplos, que as mesmas experiências sejam dadas tanto “como nossas” quanto “como de outra pessoa”; mas há também o caso em que uma experiência é simplesmente dada, sem se apresentar como nossa ou de outra pessoa, como invariavelmente acontece, por exemplo, quando estamos em dúvida sobre qual das duas é.1

No entanto, é esse nível de “dação” que representa o ponto de partida comum para a elaboração de uma distribuição cada vez melhor do material da experiência assim dada entre nós e as outras pessoas; uma apropriação cada vez mais precisa do “nosso” e o repúdio do que pertence aos “outros”. Portanto, não é o caso, como essas teorias supõem, de construirmos uma imagem das experiências de outras pessoas a partir dos dados imediatamente fornecidos por nós mesmos e, em seguida, imputarmos essas experiências, que não têm marcas intrínsecas de “estranheza”, às aparências físicas de outras pessoas. O que ocorre, em vez disso, é um fluxo imediato de experiências, indiferenciado entre o meu e o teu, que de fato contém tanto as nossas próprias experiências quanto as dos outros, misturadas e sem distinção umas das outras. Dentro desse fluxo, há uma formação gradual de vórtices cada vez mais estáveis, que lentamente atraem outros elementos do fluxo para suas órbitas e, assim, tornam-se sucessiva e gradualmente identificados com indivíduos distintos. Mas os elos essenciais do processo são simplesmente os fatos: (1) que toda experiência pertence, em geral, a um eu, de modo que, sempre que uma experiência é dada, um eu também é dado, em um sentido geral; (2) que esse eu é necessariamente um eu individual, presente em todas as experiências (na medida em que tais experiências são dadas adequadamente) e, portanto, não é constituído principalmente pela interconexão entre elas. (3) que existe um “Tu” em um sentido geral. Mas o eu individual que pode ser o dono de uma determinada experiência, seja ela nossa ou de outra pessoa, é algo que não é necessariamente aparente na experiência imediatamente apresentada.

Mas se há uma tendência humana geral de errar em uma dessas duas direções, em vez da outra, certamente não é o erro de empatia, assim chamado, pelo qual imputamos nossa própria experiência aos outros, mas a tendência oposta, na qual consideramos as experiências de outras pessoas como se fossem nossas.

(MSNS)

  1. Sem dúvida, até mesmo um pensamento dado dessa forma está relacionado ao “eu” em um sentido puramente formal, pois isso faz parte de sua natureza. Mas esse “eu” é meramente uma cifra na multiplicidade e unidade formais da consciência — não algo experimentado, muito menos o “próprio” eu, que só pode ser apresentado por contraste, em relação a algum “outro” ou “estranho” eu.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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