Do ponto de vista da nossa reflexão sobre Heidegger, a Ciência e o pensamento, duas observações são naturais.
Por um lado, a identificação da origem da hermenêutica como uma prescrição deveria ter aproximado a ideia que Heidegger tinha dela da ciência formal: esta, na altura em que ele escrevia, abraçava cada vez com menos reserva uma modalidade axiomática, segundo a qual toda a elucidação era secundária em relação ao “lançar dos dados” prescritivo inaugural dos axiomas, uma espécie de pedido que comandava o anúncio do desenvolvimento formal. Para usar os termos usados anteriormente, a associação por Heidegger da inscrição do “projeto original” ao acordo de um pedido é algo que deveria ter aproximado aquilo a que devemos chamar o seu “modelo” de pensamento de uma possível recepção da sua modalidade formal.
Por outro lado, e do mesmo modo, ao encarar a realização hermenêutica como “fala da palavra”, no contexto daquilo a que se chamou a sua viragem linguística, o segundo Heidegger afastou-se da primeira apresentação, acima recordada, desta realização como um deixar-dizer-o-ente, uma formulação que ignorava a natureza linguística do ente, e não proibia uma certa representação “realista” da hermenêutica como o teste do projeto numa “experiência” pré-linguística do mundo: uma representação que é, afinal, metafísica, como dissemos anteriormente. Mas se a hermenêutica é agora a aposta do discurso, porque é que este discurso não há-de ser demonstrativo? Se é evidente que o elemento da linguagem veio para ficar, o que é que proscreve essa modalidade eminente de discurso solicitado que é o discurso formal?
Algumas pistas sugerem uma resposta a esta questão, tal como à que foi colocada na primeira das nossas observações.
Em Was heisst denken (GA8), por exemplo, Heidegger explica que temos de conseguir traduzir a palavra de Parménides χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ’ ἐὸν ἔμμεναι ‘para grego’. E entra em pormenor sobre o estranho funcionamento desta tradução:
“Esta TRA-dução só é bem sucedida por um salto, uma espécie de salto em que salta aos olhos num instante — o que significam as palavras ἐὸν έμμεν” ouvidas à maneira grega. Podemos captar com os nossos olhos o que está a ser dito? Certamente, desde que o que é dito não se esgote em sons; desde que o olhar não permaneça com o olho.” (GA8:213)
É claro que o que é dito é precisamente a palavra da duplicidade. O texto caracteriza-a como algo que deve ser “visto” e não algo que deve ser “ouvido” primeiro, de acordo com uma concepção “presentativa” e não “obrigatória” do sentido, da qual Heidegger nunca quis sair. Todo o sentido será dito primeiro para ser propriamente “visto”. Mas Heidegger também quer que este ver seja um ouvir. É mesmo porque o “sentido” da palavra da duplicidade é o de um pedido, porque o anúncio da hermenêutica é a assunção do pedido que emana da duplicidade, que o ver deve aqui ser um ouvir: para satisfazer tudo o que é o próprio núcleo da análise heideggeriana.
No entanto, Heidegger faz tudo para que o “ver” assim comprometido com o “ouvir” nunca descambe naquilo que acompanha necessariamente todo o ouvir, uma vez que o discurso de quem ouve nunca está discursivamente isolado (não há um ouvir solipsista): a argumentação e a contra-argumentação e, para além disso, o formalismo, que se pode caracterizar como o destino de quem argumenta na ausência do “ver”. Ele escreve
“O que é apreendido por um olhar mostra-se, sempre que se mostra, apenas como o que é apreendido por um olhar. Nunca pode ser demonstrado por argumentos e contra-argumentos”… “Se o que é apreendido por um olhar encontra a sua expressão, a nomeação nunca pode restaurar à força o olhar.” (GA8:214)
Podemos ler a impossibilidade de restituir o olhar a partir da nomeação como um obstáculo levantado contra a abordagem formal, talvez conscientemente, por Heidegger: sem dúvida, a nomeação formal, a “definição” na ausência do ver, é uma dessas operações cegas, associadas à dedução regulada, que realiza a hermenêutica formal, realiza a fidelidade a um pedido exclusivamente situado no registo da voz, apenas ouvido. Nunca, de fato, restitui o olhar, se entendermos por isso uma “relação” com a duplicidade à sua maneira impecável; mas, num outro sentido, mais importante, restitui o sentido, isto é, a elucidação ou a não elucidação do conteúdo do pedido, num processo interminável, claro.
O elemento conceitual que emerge da exploração desta primeira pista é a insistência de Heidegger na singularidade da relação hermenêutica, portanto, na sua recusa em deixá-la escapar à imediaticidade do ver, na sua recusa em imaginar que ela se deixa comprometer com a pluralidade dispersa de ligações que o estatuto da audição inevitavelmente proporcionaria, ligações sobre nomeações, pessoas, argumentos, como é de fato o caso na economia da hermenêutica formal.
Segundo indício: em De uma conversa sobre a linguagem (GA12), Heidegger regressa ao uso da palavra Bezug para qualificar a “relação” do homem à duplicidade, de modo a retirar a este uso da palavra relação qualquer conotação formalista:
“Com esta palavra Bezug, pensamos em Beziehung, no sentido de “relação”. A “relação”, por sua vez, é bem conhecida, podemos designá-la num sentido vazio, formal, e utilizá-la como um numerário. Pensemos na forma como a Logística procede.” (GA12:117)
Isto é tudo para o lado negativo. E a interpretação correta do Bezug vem um pouco mais adiante:
“O fato de o homem estar no Bezug hermenêutico não implica precisamente que ele seja uma mercadoria. Pelo contrário, a palavra Bezug gostaria de dizer que o homem é requisitado no seu desenvolvimento, que o homem pertence, como quem é, a um requisitador que o requer.” (GA12:118)
Aqui, o ponto de vista da Logística sobre a relação, por estranho que pareça, é reduzido a um ponto de vista comercial.