Salanskis (1997b:51-53) – o círculo hermenêutico segundo o §63 de Ser e Tempo

Assim, começamos por analisar o § 63 (ET63) de Sein und Zeit, um texto que o próprio Gadamer admite, em Verdade e Método 1, ser de certo modo o texto fundador de uma certa ideia de hermenêutica, cujo elemento decisivo é a noção de “círculo hermenêutico”.

Nesta passagem, Heidegger destaca e discute um modo de progresso que lhe é próprio, algo como a sua “metodologia”. A passagem, desta forma, retorna ao que foi “decidido” logo no início de Sein und Zeit, e esclarece o sentido que deveria ser dado à afirmação “A fenomenologia do Dasein é hermenêutica no sentido originário da palavra, segundo o qual ela designa o trabalho de explicitação” [SZ:48], que também aparece no início da obra” 2.

Heidegger coloca, pois, em perspectiva metodológica a última “progressão” que lhe coube, aquela que o levou a compreender o Dasein em termos de projeto de ser-todo, a “conquistar” sobre ele a figura do ser-para-a-morte, figura autêntica “a princípio” encoberta pela do impessoal. Trata-se, portanto, de um passo no estudo do “ser” do Dasein, que é a abordagem de Heidegger ao longo de Sein und Zeit (a abordagem conhecida como “análise existencial”). Mas o que Heidegger diz para nos ajudar a compreender o método deste passo aplica-se de fato a qualquer investigação “ontológica”, a qualquer abordagem que questione o ser de algo, sendo que ser significa, neste contexto, o mesmo que Essência: qualquer abordagem deste tipo é concebida como hermenêutica, isto é, como explicitação, tomada como tal sob a forma de uma circularidade necessária.

No caso do Dasein, Heidegger explica que o tema do ser-para-a-morte, do projeto de ser-todo, surge como uma retomada explicativa do que já foi “compreendido” no primeiro modo de caracterizar o Dasein, em termos do estar-em-jogo (quando Heidegger escreveu, no §4 (ET4), “O Dasein é um ser que não se limita a aparecer dentro do ser. Pelo contrário, possui o seguinte ser: ‘O Dasein é um ente que não se limita a aparecer em meio ao ente. Pelo contrário, possui o seguinte privilégio ôntico: para este ser, está-em-jogo em seu ser este ser” [SZ:32]). O método hermenêutico consiste em progredir através de um regresso repetido à origem, sendo cada regresso a ocasião de obter uma explicitação sobre o fundo de pré-compreensão que constitui a nossa relação com o ser do ente em questão. No caso do Dasein, o círculo hermenêutico é o seguinte motivo lógico: O Dasein foi, no início de Sein und Zeit, escolhido com o objetivo de investigar o sentido do ser em geral, e não apenas do ser do Dasein; ora, a passagem hermenêutica da compreensão em termos do estar-em-jogo para a compreensão em termos do projeto-de-ser-tudo reclama necessariamente, de acordo com o que Heidegger admite, uma compreensão do sentido do ser em geral (é de fato necessário “saber” o que significa o ser em geral para assim determinar por explicitações sucessivas o distintivo da existência relativamente à realidade).

Mas este motivo lógico do círculo aplica-se, parece-nos, a toda a investigação ontológica hermenêutica: se, para investigar o ser de X, procedo por aprofundamento a partir de um conteúdo de compreensão A para um conteúdo de compreensão B, a minha capacidade de aprofundamento não pressupõe que possuo aquilo que, no entanto, finjo ignorar (uma vez que estou a “investigar”), nomeadamente a chave de toda a variabilidade de sentidos a priori susceptíveis de serem integrados no ser de X, ou seja, algo equivalente ao domínio do horizonte ontológico de X no interior do horizonte ontológico fundamental (do ser)? Ou, se me basear apenas no meu preconceito A, como posso sair dele, corrigi-lo para chegar a B? Por outras palavras, qual é o estatuto desta sequência de A a B, a explicação é “analítica” ou “sintética”, há pressuposição, argumentação? Estes são os problemas do círculo.

Heidegger dá a sua resposta a estes problemas referindo-se ao caso da hermenêutica do Dasein. Primeiro, insiste no fato de que o que é pressuposto no pré-juízo fundador (aqui o do estar-em-jogo) não é explorado como um fundo lógico por um discurso dedutivo. Pelo contrário, a pressuposição

“tem o carácter de projetar compreensivo, de tal modo que a interpretação que configura esta compreensão dá precisamente voz, pela primeira vez, ao próprio ente a explicitar, de modo a que ele decida por si mesmo se vai proporcionar, como este ente, a constituição de ser na direção da qual foi aberto, de modo formal-indicativo, no projeto…”. [SZ:223]

O “preconceito” é, assim, um “projetar” que “abre” o X de que trata a indagação ontológica; não é essencialmente uma informação explícita, fechada. Consequentemente

“Se é impossível ‘evitar’, na analítica existencial, um ‘círculo’ na prova, é porque ela não prova absolutamente segundo as regras da ‘lógica da consequência’” [SZ:223].

Esta última frase contém uma referência implícita à Lógica Formal e à Lógica Transcendental de Husserl 3, que utiliza esta locução para designar, muito proximamente, a lógica do cálculo proposicional, a lógica mecanizável da tautologia e da formalidade sintática (por oposição à “lógica da verdade”, onde o elemento de antecipação de um objeto está já presente). Para nós, o essencial é que, nesta descrição muito geral do funcionamento positivo do círculo hermenêutico, se exclui a ideia de um papel positivo da própria formalização e, para além disso, do trabalho do formal. Em particular, é isso que está implícito na recorrência do léxico husserliano que acabámos de identificar; e escusado será dizer que essa recorrência não é insignificante num tal contexto. Vale também a pena notar que o adjetivo formal é utilizado na nossa passagem: o primeiro projeto abrangente, o preconceito, é aberto no modo “formal-indicativo”. É evidente que, para Heidegger, a palavra formal designa aquilo que ainda não está suficientemente determinado para constranger, mas que já está suficientemente determinado para transportar o preconceito. O adjetivo não está tão afastado, no uso heideggeriano, do nosso conceito contemporâneo de forma, sintático-lógico-matemático, que se recuse a prestar-se à locução estrutura formal:

“A ideia de existência que colocámos no início da análise é o pré-esboço — existencialmente não-obrigatório — da estrutura formal da compreensão do Dasein em geral.” [SZ:222]

O “projeto” no seu estado formal é, assim, de fato, algo articulado. Mas a elucidação que ocorre nesta semi-formalidade no processo hermenêutico não é análoga a um desenvolvimento formal (que, segundo Heidegger, só pode ser um cálculo). É a própria palavra do ente, que “livremente” fornece a constituição do ser em direção à qual foi aberta, ou não. O teste hermenêutico, a passagem crucial em que o desvelamento “verdadeiro” tem ou não lugar, é assim concebido como um diálogo entre uma antecipação “formal”, reduzida ao silêncio da sua indeterminação, e um ser loquaz que fala e decide sobre a adequação ou inadequação. É um diálogo deste gênero que torna possível a síntese do círculo, a “loquacidade” do ser capaz de tornar o preconceito (a antecipação, a pré-compreensão) mais do que ele próprio, por assim dizer.

  1. Cf. Gadamer (1960), 103-108.[]
  2. no § 7 (ET7) (O método fenomenológico de investigação) que faz parte de uma seção geralmente ‘metodológica’ (Capítulo II. intitulado A dupla tarefa de elaborar a questão do ser; método e plano de investigação.[]
  3. GA3:§ 14-15, 76-79[]