A obra [Ser e Tempo], de muita eficácia na sua dramaturgia, começa com uma espécie de prólogo no céu. Aparece Platão. Cita-se um trecho do diálogo Sofistas: “Pois obviamente há muito estais familiarizados com o que na verdade eu quis dizer usando a expressão ente (seiend): nós pensávamos um dia tê-la compreendido, agora porém estamos embaraçados”.
Esse embaraço, diz Heidegger, ainda existe, mas não o admitimos a nós mesmos. Ainda não sabemos o que pensamos ao dizer que algo é ente. O prólogo queixa-se contra um duplo esquecimento do ser. Esquecemos o que é ser e também esquecemos esse esquecer. E assim trata-se de renovar a indagação pelo sentido do ser; mas como esquecemos o esquecer, trata-se sobretudo de despertar de novo a compreensão para o sentido dessa pergunta.
Como convém a um prólogo, já no início alude-se ao ponto para onde tudo isso converge: a interpretação do tempo como o horizonte possível de qualquer compreensão do ser. O sentido do ser é tempo. Está revelado o tema, mas para torná-lo compreensível Heidegger não precisará apenas de todo esse livro, e sim do resto de sua vida.
A questão do ser. Na verdade Heidegger propõe duas perguntas. Uma é: o que entendemos de verdade quando utilizamos a palavra ente? Pergunta-se pelo sentido da expressão. Nessa pergunta Heidegger liga outra bem diferente, pelo sentido do próprio ser. Heidegger afirma, quanto à pergunta em seu duplo sentido, que não existe nem mesmo uma compreensão do sentido da pergunta. Estranha afirmação.
Quanto à indagação pelo sentido do ser (não apenas da expressão), podemos dizer que é a pergunta que ocupa persistentemente a reflexão humana, desde os começos da história até hoje. É a pergunta pelo sentido objetivo e pela importância da vida humana e da natureza. A pergunta pela avaliação (Werten) e orientação para a vida e o por que e para que de mundo, cosmos, universo. A vida moral-prática faz as pessoas indagarem por isso. Em tempos mais antigos, quando física, metafísica e teologia ainda estavam juntas, a ciência também tentou responder à questão do sentido. Mas desde que Kant descobriu que como seres morais temos de fazer a pergunta, mas como cientistas não a podemos responder, desde então as ciências exatas recuam diante dessa pergunta. Mas vida prática moral continua indagando, cotidianamente, na propaganda, na literatura e na reflexão moral, na religião. Como é então que Heidegger pode afirmar que não há mais compreensão para essa pergunta? Ele só pode dizer isso porque pensa que todas essas maneiras de dar sentido, e as perguntas pelo sentido que lhes correspondem, ignoram o sentido do ser. Afirmação ousada, que de imediato coloca o filósofo na luz certa. Pois ele aparece como alguém que redescobre o que ficou esquecido e oculto desde os dias de Platão. Já no “prólogo no céu”, Heidegger se apresenta como protagonista de um interlúdio no tempo. Ainda veremos o que ele tem a nos dizer sobre o sentido do ser. Heidegger é mestre em alongar os caminhos. Só podemos nos alegrar verdadeiramente com a luz quando ela aparece no fim do túnel.
Primeiro Heidegger deixa de lado a indagação pelo sentido do ser, que eu chamo de “pergunta enfática”. Ele começa com a outra, a pergunta “semântica”, que diz: O que queremos dizer ao empregar a expressão ente em que “sentido falamos do ser”? Essa pergunta está absolutamente dentro do contexto das ciências modernas. Cada ciência, a física, a química, a sociologia, a antropologia, etc., elabora um determinado território do ente, ou trata do mesmo território mas com questionamentos e métodos diferentes. Cada consciência metodológica quanto à maneira adequada de abordarmos nosso objeto, implica uma ontologia regional, ainda que não a chamemos mais assim. Por isso não compreendemos direito a afirmação de Heidegger, de que não temos mais clareza quanto ao sentido em que tomamos o ser no território de cada objeto. Exatamente o neokantismo desenvolvera um extraordinário senso da consciência do método. Havia as sutis distinções de Rickert e Windelband entre ciências da natureza e culturais, a hermenêutica de Ditlhey, a sociologia compreensiva de Max Weber, o método fenomenológico de Husserl, a hermenêutica psicanalítica do inconsciente. Nenhuma dessas ciências era metodologicamente ingênua, todas tinham uma consciência ontológica do problema, na medida em que refletiam sobre o seu lugar no contexto total da pesquisa do real. Portanto, para a indagação semântico-metodológica vale o mesmo que para a pergunta enfática pelo sentido do ser. Nas duas vezes Heidegger afirma que não há compreensão para o sentido das perguntas – mas mesmo assim elas são feitas por toda parte. Na vida prática moral, enfática, nas ciências, é a indagação semântico-metodológica.
Heidegger deve pretender algo especial, apenas ainda não sabemos o que. Habilmente ele constrói a tensão, para finalmente apresentar a sua tese. Exatamente na pesquisa do ser humano torna-se claro que as ciências não têm clareza a respeito do sentido em que fazem o ser humano ser ente. Fazem como se se pudesse divisar o ser humano como um todo, como outros objetos presentes no mundo. E com isso seguem uma tendência espontânea do Dasein, de compreender o próprio ser partindo do ente com o qual ele se relaciona na essência constante e imediatamente, isto é do mundo (SuZ, 15). Mas isso é uma automistificação do Dasein, de que enquanto ele viver nunca está concluído, inteiro e encerrado como seu objeto, mas sempre aberto para o futuro, cheio de possibilidades. Do Dasein faz parte o ser-possível (Möglich-sein).