(Rorty2009)
Para os meus propósitos presentes, a importância do livro de Gadamer é que ele consegue separar um dos três elementos da noção filosófica de “espírito” — a noção romântica do homem como auto-criativo — dos outros dois elementos com os quais aquele se enredara. Gadamer (como Heidegger, para com quem parte de seu trabalho está em dívida) não faz quaisquer concessões, seja ao dualismo cartesiano, seja à noção de “constituição transcendental” (em qualquer sentido ao qual se poderia dar uma interpretação idealista).1 Assim ele ajuda a reconciliar o ponto “naturalista” que tentei estabelecer no capítulo anterior — que a “irredutibilidade das Geisteswissenschaften” não é uma questão de dualismo metafísico — com nossa intuição “existencialista” de que redescrever a nós mesmos é a coisa mais importante que podemos fazer. Ele o faz substituindo a noção de Bildung (educação, autoformação) por aquela de “conhecimento” como objetivo do pensar. Dizer que nos tornamos pessoas diferentes, que nos “refazemos” à medida que lemos mais, conversamos mais e escrevemos mais é simplesmente um modo dramático de dizer que as sentenças que se tornam verdadeiras a nosso respeito em virtude de tais atividades são com frequência mais importantes para nós que as sentenças que se tornam verdadeiras a nosso respeito quando bebemos mais, ganhamos mais e assim por diante. Os eventos que nos tornam capazes de dizer coisas novas e interessantes sobre nós mesmos são, nesse sentido não-metafísico, mais “essenciais” para nós (ao menos para nós, intelectuais relativamente desocupados, habitando uma parte estável e próspera do mundo) do que os eventos que mudam nossas formas ou nossos padrões de vida (nos “refazendo” de modos menos “espirituais”). Gadamer desenvolve sua noção de wirkungsgeschichtliches Bewusstsein (o tipo de consciência do passado que nos modifica) para caracterizar uma atitude interessada não tanto no que está ali fora no mundo, ou no que aconteceu na história, quanto no que podemos obter da natureza e da história para nossos próprios usos. Nessa atitude, obter os fatos corretamente (sobre átomos e o vácuo ou sobre a história da Europa) é simplesmente propedêutico para encontrar um modo novo e mais interessante de nos expressar e, dessa forma, de lidar com o mundo. Do ponto de vista educacional, enquanto oposto ao epistemológico ou tecnológico, o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades.2
Como “educação” soa um tanto prosaico demais, e Bildung um tanto estrangeiro demais, irei usar “edificação” para representar esse projeto de encontrar modos novos, melhores, mais interessantes, mais fecundos de falar. A tentativa de edificar (a nós mesmos ou a outros) pode consistir na atividade hermenêutica de estabelecer conexões entre a nossa própria cultura e alguma cultura ou período histórico exóticos, ou entre nossa própria disciplina e outra disciplina que pareça perseguir alvos incomensuráveis num vocabulário incomensurável. Mas pode em vez disso consistir na atividade “poética” de cogitar esses novos alvos, novas palavras ou novas disciplinas, seguida, por assim dizer, pelo inverso da hermenêutica: a tentativa de reinterpretar nossas cercanias familiares nos termos não-familiares de nossas novas invenções. Em qualquer caso, a atividade é (apesar da relação etimológica entre as duas palavras) edificante sem ser construtiva — ao menos se “construtivo” significa o tipo de cooperação na realização de programas de pesquisa que tem lugar no discurso normal. Pois o discurso edificante é suposto ser anormal, tirar-nos para fora de nossos velhos eus pelo poder da estranheza, para ajudar-nos a nos tomarmos novos seres.
O contraste entre o desejo de edificação e o desejo da verdade não é, para Gadamer, uma expressão de uma tensão que necessite ser resolvida ou chegar a um meio-termo. Se há um conflito, é entre a visão platônica-aristotélica de que o único modo de ser edificado é saber o que há ali fora (refletir os fatos com precisão — perceber nossa essência conhecendo essências) e a visão de que a busca da verdade é apenas um entre muitos modos pelos quais poderíamos ser edificados. Gadamer, corretamente, atribui a Heidegger o crédito por elaborar um modo de ver a busca de conhecimento objetivo (primeiramente desenvolvida pelos gregos, usando a matemática como modelo) como um projeto humano entre outros.3 O ponto, entretanto, é mais vivido em Sartre, que vê a tentativa de obter um conhecimento objetivo do mundo, e por conseguinte de si mesmo, como uma tentativa de evitar a responsabilidade por escolher o próprio projeto.4 Para Sartre, dizer isso não é dizer que o desejo de conhecimento objetivo da natureza, história ou qualquer outra coisa está destinado a ser malsucedido, ou mesmo destinado a ser auto-frustrante. É meramente dizer que apresenta uma tentação à auto-frustração à medida que pensamos que, por conhecer quais descrições dentro de um conjunto dado de discursos normais se aplicam a nós, dessa forma conhecemos a nós mesmos. Para Heidegger, Sartre e Gadamer a inquirição objetiva é perfeitamente possível e frequentemente efetiva — a única coisa a ser dita contra ela é que proporciona apenas alguns modos, dentre muitos, de descrever a nós mesmos, e que alguns destes podem ser um obstáculo ao processo de edificação.
- Cf. ibid., p. 15. “Mas podemos reconhecer que Bildung é um elemento do espírito sem estar atado à filosofia do espírito absoluto de Hegel, justamente como a intelecção da historicidade da consciência não está atada à sua filosofia da história do mundo.”[
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- O contraste aqui é o mesmo que o envolvido na querela tradicional entre educação “clássica” e educação “científica”, mencionado por Gadamer em sua seção de abertura sobre “The Significance of the Humanist Tradition”. Mais geralmente, o mesmo pode ser visto como um aspecto da querela entre a poesia (que não pode ser omitida do primeiro tipo de educação) e filosofia (a qual, quando concebendo a si mesma como supraciência, gostaria de tornar-se fundamental para o último tipo de educação). Yeats perguntou aos espíritos (os quais, acreditava, estavam ditando-lhe A Vision através da mediunidade de sua mulher) por que haviam vindo. Os espíritos replicaram: “Para trazer-lhe metáforas para poesia.” Um filósofo poderia ter esperado alguns fatos concretos sobre como eram as coisas do outro lado, mas Yeats não ficou desapontado.[
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- Ver a seção chamada “The Overcoming of the Epistemological Problem…” em Truth and Method, pp. 214ss., e comparar Martin Heidegger, Being and Time, trad. John Macquarrie e Edward Robinson (Nova York, 1962), seção 32.[
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- Ver Jean-Paul Sartre, Being and Nothingness, trad. Hazel Barnes (Nova York, 1956), pte. dois, cap. 3, sec. 5, e a “Conclusion” do livro.[
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