Rojcewicz (2006) – Uma metáfora do pensamento calculativo

Quanto à tragédia, sugiro Notas do Subsolo de Dostoiévski ou, para traduzir o título russo (Zapiski iz podpol’ya) de forma mais literal, Anotações de Sob o Assoalho. O edifício sob cujo assoalho as anotações se originam é o da ciência ou da tecnologia, chamado aqui de “palácio de cristal”. Dentro do palácio, tudo é cristalino, ou seja, racional, calculável, previsível. Mas sob o assoalho — na experiência cotidiana — as coisas são obscuras, caóticas, aleatórias, irracionais. O autor das anotações defende os direitos do irracional, sua resistência contra a tentativa de subjugá-lo à perfeita racionalidade. O escritor anônimo representa os direitos da liberdade diante de um determinismo crescente, os direitos do corpo diante da razão, os direitos da experiência ingênua diante da explicação científica dessa experiência. Em certo sentido, ele defende os direitos do pensamento contemplativo em oposição ao pensamento calculativo. Em contraste com todas as outras pessoas diretas, práticas e calculistas, ele é excessiva e agudamente consciente. Ele é, como diz, filosófico; ele é teórico — ou seja, ele está ciente de que a ciência está transformando as pessoas em objetos, em meros efeitos de causas. É por isso que ele se sente insultado e por que toda a sua vida se torna uma forma de devolver o insulto. Na ciência, as pessoas são teclas de piano ou registros de órgão, são meras respostas automáticas a estímulos, e suas vidas inteiras podem ser calculadas de antemão. Diante dessa crescente objetificação, o escritor representa a última tentativa (“Eu não terei leitores”) de preservar a personalidade, a liberdade e a dignidade humana. Ele vê toda a sua obra como consistindo em provar que ele é um homem e, precisamente, não uma tecla de piano, mesmo que isso exija que ele faça algo perverso e irracional de propósito. Ele fará qualquer coisa, até mesmo enlouquecer, para provar que nem toda ação pode ser calculada antecipadamente pela ciência natural e pela matemática.

Tal prova pode vir ao custo da própria pele. A tragédia do livro é que é precisamente esse custo que é pago pelo autor das anotações. Por exemplo, ele sofre de uma doença e sabe que a ciência médica pode curá-lo, mas ele não consultará um médico, e sua razão é maliciosa: ele não permitirá que os médicos tenham o prazer de objetificá-lo. Ele não se transformará em um objeto de observação científica, ele não, poderíamos dizer, transformará seu coração humano em um objeto estetoscópico, ele não participará do mundo objetivo de forma alguma, ele não, em sua própria metáfora mista, contribuirá com um único tijolo para a construção do palácio de cristal. Na era em que ele vive, tendo se tornado fútil resistir à maré crescente da objetificação científica, ele recorre à irracionalidade — por despeito. Ele eventualmente se torna um seguidor de Dionísio simplesmente para demonstrar que nem tudo pode ser tornado apolíneo, simplesmente para contrariar aqueles que dizem que pode. A tragédia do livro consiste em sua representação das consequências da tentativa de tornar tudo racional e calculável, ou seja, que o irracional e o caótico se afirmarão — com veemência. (RR2006)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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