Ricoeur: A FUNÇÃO HERMENÊUTICA DO DISTANCIAMENTO

Em meu primeiro estudo, descrevi, em substância, o pano de fundo sobre o qual tento, pessoalmente, elaborar o problema hermenêutico de um modo que seja significativo para o diálogo entre a hermenêutica e as disciplinas semiológicas e exegéticas. Essa descrição levou-nos a uma antinomia que pareceu-me ser a mola essencial da obra de Gadamer, a saber, a oposição entre distanciamento alienante de pertença. Esta oposição é uma antinomia, pois suscita uma alternativa insustentável: de um lado, dissemos, o distanciamento alienante é a atitude a partir da qual é possível a objetivação que reina nas ciências do espírito ou ciências humanas; mas esse distanciamento, que condiciona o estatuto científico das ciências, é, ao mesmo tempo, a degradação que arruína a relação fundamental e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histórica que pretendemos erigir em objeto. Donde a alternativa subjacente ao título mesmo da obra de Gadamer, Verdade e método: ou praticamos a atitude metodológica, mas perdemos a densidade ontológica da realidade estudada, ou então praticamos a atitude de verdade, e somos forçados a renunciar à objetividade das ciências humanas.

Minha própria reflexão procede de uma recusa dessa alternativa e de uma tentativa de ultrapassá-la. Esta tentativa encontra sua primeira expressão na escolha de uma problemática dominante e que me parece escapar, por natureza, à alternativa entre distanciamento alienante e participação por pertença. Essa problemática dominante é a do texto, pela qual, com efeito, reintroduz-se uma noção positiva e, se posso assim me expressar, produtora do distanciamento. O texto é, para mim, muito mais que um caso particular de comunicação inter-humana: é o paradigma do distanciamento na comunicação. Por esta razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância.

No que se segue, elaboraremos a noção de texto em vista daquilo mesmo de que ela é a testemunha, a saber, da função positiva e produtora do distanciamento, no cerne da historicidade da experiência humana.

Proponho que essa problemática seja organizada em torno de cinco temas:

• a efetuação da linguagem como discurso;

• a efetuação do discurso como obra estruturada;

• a relação da fala com a escrita no discurso e nas obras de discurso;

• a obra de discurso como projeção de um mundo;

• o discurso e a obra de discurso como mediação da compreensão de si

Todos esses traços, tomados conjuntamente, constituem os critérios da textualidade.

Desde já, observaremos que a questão da escrita, se está situada no centro dessa rede de critérios, de forma alguma constitui a problemática única do texto. Por conseguinte, não poderíamos identificar pura e simplesmente texto e escrita. E isto, por várias razões: a) em primeiro lugar, não é a escrita enquanto tal que suscita um problema hermenêutico, mas a dialética da fala e da escrita; b) em seguida, essa dialética se constrói sobre uma dialética de distanciamento mais primitiva que a oposição da escrita à fala, e que já pertence ao discurso oral enquanto ele é discurso; portanto, é no próprio discurso que se deve procurar a raiz de todas as dialéticas ulteriores; c) enfim, entre a efetuação da linguagem como discurso e a dialética da fala e da escrita, pareceu-me necessário intercalar uma noção fundamental: a da efetuação do discurso como obra estruturada. Pareceu-me que a objetivação da linguagem, nas obras de discurso, constitui a condição mais próxima da inscrição do discurso na escrita. A literatura é constituída de obras escritas, por conseguinte, antes de tudo, de obras. Mas isso não é tudo: a tríade discurso-obra-escrita ainda não constitui senão o tripé que suporta a problemática decisiva, a do projeto de um mundo, que eu chamo de o mundo da obra, e onde vejo o centro de gravidade da questão hermenêutica. Toda a discussão anterior servirá apenas para preparar o deslocamento do problema do texto em direção ao do mundo que ele abre. Ao mesmo tempo, a questão da compreensão de si, que, na hermenêutica romântica, ocupara um lugar de destaque, vê-se transferida para o fim, como fator terminal, e não como fator introdutório ou, menos ainda, como centro de gravidade.

A) A efetuação da linguagem como discurso

O discurso, mesmo oral, apresenta um traço absolutamente primitivo de distanciamento, que é a condição de possibilidade de todos os traços que consideraremos posteriormente. Este traço primitivo de distanciamento pode ser caracterizado pelo título: a dialética do evento e da significação.

De um lado, o discurso se dá como evento: algo acontece quando alguém fala. Esta noção de discurso como evento impõe-se desde que levemos em consideração a passagem de uma linguística da língua ou do código a uma linguística do discurso ou da mensagem. A distinção tem sua origem, como se sabe, em Ferdinand de Saussure (F. Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, 1973, pp. 30s., 36 s., 112, 227.) e em Louis Hjelmslev (L. Hjelmslev, Essais linguistiques, Copenhague, 1959.). O primeiro distingue a “língua” e a “fala”; o segundo distingue o “esquema” e o “uso”. A teoria do discurso tira todas as consequências epistemológicas dessa dualidade. Enquanto a linguística estrutural limita-se a colocar entre parênteses a fala e o uso, a teoria do discurso suspende o parêntese e afirma a existência de duas linguísticas, repousando sobre leis diferentes. Foi o linguista francês Emile Benveniste (E. Benveniste, Problèmes de linguistique générale, Paris, 1966) quem mais se aprofundou nessa direção. Para ele, a linguística do discurso e a linguística da língua se constroem sobre unidades diferentes. Se o “signo” (fonológico e léxico) é a unidade de base da língua, a “frase” é a unidade de base do discurso. É a linguística da frase que suporta a dialética do evento e do sentido, de onde parte nossa teoria do texto.

Mas o que entendemos por evento?

Dizer que o discurso é um evento é dizer, antes de tudo, que o discurso é realizado temporalmente e no presente, enquanto que o sistema da língua é virtual e fora do tempo. Neste sentido, podemos falar, com Benveniste, da “instância do discurso” para designar o surgimento do próprio discurso como evento. Ademais, enquanto que a linguagem não possui sujeito, no sentido em que a questão “quem fala?” não é válida nesse nível, o discurso remete a seu locutor, mediante um conjunto complexo de indicadores, tais como os pronomes pessoais. Neste sentido, diremos que a instância do discurso é auto-referencíal. O caráter de evento vincula-se, agora, à pessoa daquele que fala. O evento consiste no fato de alguém falar, de alguém se exprimir tomando a palavra. Num terceiro sentido, ainda, o discurso é evento: enquanto que os signos da linguagem só remetem a outros signos, no interior do mesmo sistema, e fazem com que a língua não possua mais mundo, como não possui tempo e subjetividade, o discurso é sempre discurso a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever, exprimir ou representar. O evento, nesse terceiro sentido, é a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso. Enfim, ao passo que a língua não é senão a condição prévia da comunicação, à qual ela fornece seus códigos, é no discurso que todas as mensagens são trocadas. Neste sentido, só o discurso possui, não somente um mundo, mas o outro, outra pessoa, um interlocutor ao qual se dirige. Neste último sentido, o evento é o fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo, que pode travar-se, prolongar-se ou interromper-se.

Todos esses traços, tomados conjuntamente, constituem o discurso em evento. E interessante notar como eles só aparecem no movimento de efetuação da língua em discurso, na atualização de nossa competência linguística em performance.

Todavia, ao enfatizar, assim, o caráter de evento do discurso, só revelamos um dos dois pólos do par constitutivo do discurso. Precisamos agora elucidar o segundo pólo: o da significação. Porque é da tensão entre esses dois pólos que surgem a produção do discurso como obra, a dialética da fala e da escrita, e todos os outros traços do texto que enriquecerão a noção de distanciamento.

Para introduzir essa dialética do evento e do sentido, proponho que se diga que, se todo discurso é efetuado como evento, todo discurso é compreendido como significação.

O que pretendemos compreender não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua significação que permanece. Este ponto exige a máxima clarificação: na realidade, poderia parecer que estamos dando um passo para trás, da linguística do discurso à da língua. Não é nada disso. E na linguística do discurso que o evento e o sentido se articulam um sobre o outro. Esta articulação é o núcleo de todo o problema hermenêutico. Assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa, enquanto evento, na significação. Essa ultrapassagem do evento na significação é típica do discurso enquanto tal. Revela a intencionalidade mesma da linguagem, a relação, nela, do noema com a noese. Se a linguagem é um meinen, uma visada significante, é precisamente em virtude dessa ultrapassagem do evento na significação.

Por conseguinte, o primeiro distanciamento é o distanciamento do dizer no dito.

Mas o que é dito? Para elucidar de modo mais completo esse problema, a hermenêutica deve recorrer não somente à linguística — mesmo compreendida no sentido de linguística do discurso, por oposição à linguística da língua, como fizemos até aqui —, mas também à teoria do Speech-Act, como pode ser encontrada em Austin (J. L. Austin, How to do things with words, Oxford, 1962. – Trad. fr.: Quand dire, c’est faire, Paris, 1970) e em Searle (J. R. Searle, Speech-act, an essay in the philosophy of language, Cambridge, 1969).

O ato de discurso, segundo esses autores, é constituído por uma hierarquia de atos subordinados, distribuídos em três níveis:

– nível do ato locucionário ou proposicional: ato de dizer;

– nível do ato (ou da força) ilocucionário: aquilo que fazemos ao dizer;

– nível do ato perlocucionário: aquilo que fazemos pelo fato de falar.

Se eu digo a alguém para fechar a porta, faço três coisas: a) refiro o predicado de ação (fechar) a dois argumentos (alguém e a porta): é o ato de dizer; b) mas eu digo essa coisa a alguém com a força de uma ordem, e não de uma constatação, de um desejo ou de uma promessa: é o ato ilocucionário; c) enfim, posso provocar certos efeitos, tais como o medo, pelo fato de dar uma ordem a alguém; esses efeitos fazem do discurso uma espécie de estímulo que produz certos resultados: é o ato perlocucionário.

Quais as implicações dessas distinções para nosso problema da exteriorização intencional pela qual o evento se ultrapassa na significação?

O ato locucionário se exterioriza nas frases enquanto proposição. Com efeito, é enquanto tal proposição que a frase pode ser identificada e reidentificada como sendo a mesma frase. Uma frase se apresenta, assim, como uma enunciação (Aus-sage), susceptível de ser transferida a outras, com este ou aquele sentido. O que aqui é identificado, é a própria estrutura predicativa, como deixa entrever o exemplo supracitado. Assim, uma frase de ação deixa-se identificar por seu predicado específico (tal ação) e por seus dois argumentos (o agente e o paciente). Mas o ato ilocucionário também pode ser exteriorizado graças aos paradigmas gramaticais (os modos: indicativo, imperativo etc.) e aos outros procedimentos que “marcam” a força ilocucionária de uma frase e, dessa forma, permitem identificá-la e reidentificá-la. É verdade que, no discurso oral, a força ilocucionária se faz identificar pela mímica e pelos gestos, tanto quanto por traços propriamente linguísticos, e que, no primeiro discurso, são os aspectos menos articulados, os que chamamos de prosódia, que fornecem os indícios mais probantes. Não obstante, as marcas propriamente sintáticas constituem um sistema de inscrição que torna possível, por princípio, a fixação, pela escrita, dessas marcas da força ilocucionária.

Precisamos reconhecer, no entanto, que o ato perlocucionário constitui o aspeto menos inscritível do discurso, e caracteriza, preferencialmente, o discurso oral. Mas a ação perlocucionária é justamente aquilo que, no discurso, é o menos discurso. É o discurso enquanto estímulo. Neste caso, o discurso age, não pela trucagem do reconhecimento, por meu interlocutor, de minha intenção, mas, de certa forma, de um modo energético, por influência direta sobre as emoções e as disposições afetivas do interlocutor. Assim, o ato proposicional, a força ilocucionária e a ação perlocucionária tornam-se aptos, numa ordem decrescente, à exteriorização intencional que torna possível a inscrição pela escrita.

Por isso torna-se necessário entender por significação do ato de discurso, ou por noema do dizer, não somente o correlato da frase, no sentido estrito do ato proposicional, mas também o da força ilocucionária e, mesmo, o da ação perlocucionária, na medida em que esses três aspetos do ato de discurso são codificados e regulados segundo paradigmas; na medida, pois, em que podem ser identificados ou reidentificados como possuindo a mesma significação. Portanto, dou aqui ao termo significação uma acepção bastante ampla, recobrindo todos os aspetos e todos os níveis da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez, a exteriorização do discurso na obra e nos escritos.

B) O discurso como obra

Proponho três traços distintivos da noção de obra. Em primeiro lugar, uma obra é uma sequência mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de compreensão, relativo à totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal. Em seguida, a obra é submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e faz com que o discurso seja um relato, um poema, um ensaio etc. É essa codificação que é conhecida pelo nome de gênero literário. Em outros termos, compete a uma obra situar-se dentro de um gênero literário. Enfim, uma obra recebe uma configuração única, que a assimila a um indivíduo e que se chama de estilo.

Composição, pertença a um gênero, estilo individual caracterizam o discurso como obra. A própria palavra obra revela a natureza dessas novas categorias: são categorias da produção e do trabalho. Impor uma forma à matéria, submeter a produção a gêneros, enfim, produzir um indivíduo, eis outras tantas maneiras de considerar a linguagem como um material a ser trabalhado e a ser formado. Dessa forma, o discurso se torna o objeto de uma práxis e de uma techné. A este respeito, não há oposição radical entre o trabalho do espírito e o trabalho manual. A este propósito, podemos evocar o que diz Aristóteles da prática e da produção: “Toda prática e toda produção referem-se ao individual: de fato, não é o homem que o médico cura, a não ser por acidente, mas Cálias ou Sócrates, ou qualquer outro indivíduo assim designado e que seja, ao mesmo tempo, homem” (Metafísica A, 981 a, a 15). No mesmo sentido, G. G. Granger escreve em seu Ensaio de uma filosofia do estilo: “A prática é a atividade considerada com seu contexto complexo e, especialmente, com as condições sociais que lhe dão significação num mundo efetivamente vivido” (G. G. Granger, Essai d’une philosophie du style, Paris, 1968, p. 6). O trabalho é, assim, uma das estruturas da prática, senão sua estrutura principal: é “a atividade prática objetivando-se em obras” (p. 6).

Da mesma maneira, a obra literária é o resultado de um trabalho que organiza a linguagem. Ao trabalhar o discurso, o homem opera a determinação prática de uma categoria de indivíduos: as obras de discurso. É aqui que a noção de significação recebe uma especificação nova de ser transferida para a escala da obra individual. Por isso há um problema de interpretação das obras, irredutível à simples inteligência das frases isoladamente. O fato de estilo ressalta a escala do fenômeno da obra como significante, globalmente enquanto obra. Assim, o problema da literatura vem inscrever-se no interior de uma estilística geral, concebida como “meditação sobre as obras humanas” (p. 11) e especificada pela noção de trabalho, de que ela busca as condições de possibilidade: “Procurar as mais gerais condições da inserção das estruturas numa prática individual, esta seria a tarefa de uma estilística” (p. 2).

À luz desses princípios, o que ocorre com os traços do discurso enumerados no início desse estudo?

Estamos lembrados do paradoxo inicial do evento e do sentido: o discurso, dizíamos, é efetuado como evento, mas compreendido como sentido. Como a noção de obra pode situar-se com referência a esse paradoxo? Ao introduzir na dimensão do discurso categorias próprias à ordem da produção e do trabalho, a noção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracionalidade do evento e a racionalidade do sentido. O evento é a própria estilização, mas essa estilização está em relação dialética com uma situação concreta complexa apresentando tendências, conflitos. A estilização surge no seio de uma experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo, indeterminações. Apreender uma obra como evento é captar a relação entre a situação e o projeto no processo de reestruturação.

A obra de estilização toma a forma singular de um acordo entre uma situação anterior que, de repente, aparece desfeita, não resolvida, aberta, e uma conduta ou uma estratégia que reorganiza os resíduos deixados pela estruturação anterior. Ao mesmo tempo, o paradoxo do evento fugidio e do sentido identificável e repetível, que está no ponto de partida de nossa meditação sobre o distanciamento no discurso, encontra na noção de obra uma notável mediação. A noção de estilo acumula os dois caracteres do evento e do sentido. O estilo, como vimos, surge temporalmente como um indivíduo único e, a este título, diz respeito ao momento irracional do parti pris, mas sua inscrição no material da linguagem confere-lhe a aparência de uma ideia sensível, de um universal concreto, como diz W. K. Wimsatt, em The verbal icon (W. K. Wimsatt, The verbal icon, studies in the meaning of poetry, Kentucky, 1954). O estilo é a promoção de um parti pris legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e enaltece o caráter acontecimental do discurso. Mas este acontecimento não deve ser procurado alhures, mas na forma mesma da obra. Se o indivíduo é inapreensível teoricamente, pode ser reconhecido como a singularidade de um processo, de uma construção, em resposta a uma situação determinada.

Quanto à noção de sujeito de discurso, recebe um estatuto novo quando o discurso se torna uma obra. A noção de estilo permite um novo enfoque da questão do sujeito da obra literária. A chave encontra-se do lado das categorias da produção do trabalho. A este respeito, o modelo do artesão é particularmente instrutivo (a estampilha do móvel no século XVIII, a assinatura do artista, etc). Com efeito, a noção de autor, que aqui vem qualificar a de sujeito falante, aparece como o correlato da individualidade da obra. A demonstração mais surpreendente deste fato é fornecida pelo exemplo menos literário possível, o estilo da construção do objeto matemático, tal como Granger a expõe na primeira parte de seu Ensaio de uma filosofia do estilo. Até mesmo a construção de um modelo abstrato dos fenômenos, a partir do momento em que é uma atividade prática imanente a um processo de estruturação, traz um nome próprio. Tal modo de estruturação aparece necessariamente como escolhido, de preferência a outro. Porque o estilo é um trabalho que individua, vale dizer, que produz o individual, também designa, retroativamente, seu autor. Assim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que locutor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo, porém, a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no sentido em que é contemporânea da significação da obra como um todo. A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são estritamente correlativas. O homem se individua produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa relação.

Todavia, a mais importante consequência da introdução da categoria de obra deve-se à noção mesma de composição. Realmente, a obra de discurso apresenta caracteres de organização e de estrutura que nos permitem estender ao próprio discurso os métodos estruturais que, inicialmente, foram aplicados com êxito nas entidades da linguagem mais curtas que a frase, em fonologia e em semântica. A objetivação do discurso na obra e o caráter estrutural da composição, a que se acrescentará o distanciamento pela escrita, leva-nos a questionar por completo a oposição recebida de Dilthey entre “compreender” e “explicar”.

Uma nova época da hermenêutica está aberta para o sucesso da análise estrutural. Doravante, a explicação é o caminho obrigatório da compreensão. Isto não quer dizer – é preciso esclarecê-lo desde agora — que a explicação possa, em contrapartida, eliminar a compreensão. A objetivação do discurso, numa obra estruturada, não suprime o traço fundamental e primeiro do discurso, a saber, que o é constituído por um conjunto de frases onde alguém diz algo a alguém a propósito de alguma coisa. A hermenêutica, como vimos, permanece a arte de discernir o discurso na obra. Mas este discurso não se dá alhures: ele se verifica nas estruturas da obra e por elas. Consequentemente, a interpretação é a réplica desse distanciamento fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso, comparáveis à sua objetivação nos produtos de seu trabalho e de sua arte.

C) A relação entre a fala e a escrita

O que ocorre com o discurso quando ele passa da fala à escrita? À primeira vista, a escrita parece introduzir apenas um fator puramente exterior e material: a fixação, que coloca o evento do discurso ao abrigo da destruição. Na realidade, a fixação não passa da aparência externa de um problema singularmente mais importante concernindo a todas as propriedades do discurso que enumeramos anteriormente. Em primeiro lugar, a escrita torna o texto autônomo relativamente à intenção do autor. O que o texto significa, não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. Significação verbal, vale dizer, textual, e significação mental, ou seja, psicológica, são doravante destinos diferentes.

Essa primeira modalidade de autonomia encoraja-nos a reconhecer na Verfremdung uma significação positiva que não se reduz à nuança de degradação que Gadamer pretende atribuir-lhe. Em contrapartida, nessa autonomia do texto já está contida a possibilidade de aquilo que Gadamer chama de a “coisa” do texto ser subtraída ao horizonte intencional finido de seu autor. Em outras palavras, graças à escrita, o “mundo” do texto pode fazer explodir o mundo do autor.

Contudo, o que é verdadeiro das condições psicológicas, também o é das condições sociológicas da produção do texto. É essencial a uma obra literária, a uma obra de arte em geral, que ela transcenda suas próprias condições psicossociológicas de produção e que se abra, assim, a uma sequência ilimitada de leituras, elas mesmas situadas em contextos sócio-culturais diferentes. Em suma, o texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico quanto do psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se re-contextualizar numa nova situação: é o que justamente faz o ato de ler.

Essa libertação em relação ao autor possui seu equivalente por parte daquele que recebe o texto. Diferentemente da situação dialogai, onde o vis-à-vis é determinado pela situação mesma do discurso, o discurso escrito suscita para si um público que, virtualmente, se estende a todo aquele que sabe ler. A escrita encontra,, aqui, seu mais notável efeito: a libertação da coisa escrita relativamente à condição dialogai do discurso. 0 resultado é que a relação entre escrever e ler não é mais um caso particular da relação entre falar e ouvir.

Essa autonomia do texto tem uma primeira consequência hermenêutica importante: o distanciamento não é o produto da metodologia e, a este título, algo de acrescentado e de parasitário. Ele é constitutivo do fenômeno do texto como escrita; ao mesmo tempo, também é a condição da interpretação; a Verfremdung não é somente aquilo que a compreensão deve vencer, mas também aquilo que a condiciona. Estamos, assim, em condições de descobrir, entre objetivação e interpretação, uma relação muito menos dicotômica e, por conseguinte, muito mais complementar que a que havia sido instituída pela tradição romântica. A passagem da fala à escrita afeta o discurso de vários modos; de uma maneira especial, o funcionamento da referência fica alterado quando não nos é mais possível mostrar a coisa de que falamos como pertencendo à situação comum aos interlocutores do diálogo. Mas reservamos uma análise distinta para esse problema, intitulada de “mundo do texto”.

D) O mundo do texto

O traço que colocamos sob este título vai levar-nos ao mesmo tempo a ultrapassar as posições da hermenêutica romântica, que ainda são as de Dilthey, mas também às antípodas do estruturalismo, que recuso, aqui, como o simples contrário do romantismo.

Estamos lembrados de que a hermenêutica romântica enfatizava a expressão da genialidade. Igualar-se a essa genialidade, tornar-se contemporâneo dela, era a tarefa da hermenêutica. Dilthey, próximo ainda, neste sentido, da hermenêutica romântica, fundava seu conceito de interpretação sobre o de “compreensão”, vale dizer, sobre a captação de uma vida estranha exprimindo-se através das objetivações da escrita. Donde o caráter historicizante e psicologizante da hermenêutica romântica e diltheyniana. Esta via não nos é mais acessível, a partir do momento em que levamos a sério o distanciamento, pela escrita, e a objetivação, pela estrutura da obra. Significaria isto, porém, que ao renunciar a apreender a alma de um autor, limitamo-nos a reconstituir a estrutura de uma obra?

A resposta a essa questão afasta-nos tanto do estruturalismo quanto do romantismo. A tarefa hermenêutica fundamental escapa à alternativa da genialidade ou da estrutura. Vinculo-a à noção do “mundo do texto”.

Essa noção prolonga o que acima chamamos de a referência ou denotação do discurso: em toda proposição podemos distinguir, com Frege, seu sentido e sua referência (G. Frege, Écrits logiques et philospphiques, trad. fr., Paris, 1971, pp. 102s). Seu sentido é o objeto real que visa; este sentido é puramente imanente ao discurso. Sua referência é seu valor de verdade, sua pretensão de atingir a realidade. Por esse caráter, o discurso se opõe à língua, que não possui relação com a realidade, as palavras remetendo a outras palavras na ronda infindável do dicionário. Somente o discurso, dizíamos, visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo.

A questão nova que se coloca é a seguinte: o que ocorre com a referência quando o discurso se torna texto? É aqui que a escrita, mas, sobretudo, a estrutura da obra, alteram a referência, a ponto de torná-la inteiramente problemática. No discurso oral, o problema se resolve, enfim, na função ostensiva do discurso. Em outros termos, a referência se resolve no poder de mostrar uma realidade comum aos interlocutores; ou, se não podemos mostrar a coisa de que falamos, pelo menos podemos situá-la relativamente à única rede espaço-temporal à qual também pertencem os interlocutores. Finalmente, é o “aqui” e o “agora”, determinados pela situação do discurso, que conferem a referência última a todo discurso. Com a escrita, as coisas já começam a mudar. Não há mais, com efeito, situação comum ao escritor e ao leitor. Ao mesmo tempo, as condições concretas do ato de mostrar não existem mais. Sem dúvida, é essa abolição do caráter mostrativo ou ostensivo da referência que torna possível o fenômeno que denominamos de “literatura”, onde toda referência à realidade dada pode ser abolida. Contudo, é essencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários, geralmente ligados à escrita, mas não necessariamente tributários desta, que essa abolição da referência ao mundo dado é levada até suas mais extremas condições. Este é, me parece, o papel da maior parte de nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura de ficção — conto, mito, romance, teatro —, bem como de toda literatura denominada de poética, onde a linguagem parece glorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do discurso ordinário.

No entanto, não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que Husserl designava pela expressão de Lebenswelt, e Heidegger pela de “ser-no-mundo”.

É essa dimensão referencial absolutamente original da obra de ficção e de poesia que, a meu ver, coloca o problema hermenêutico mais fundamental. Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do texto; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem das estruturas, o que permanece para ser interpretado? Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto.

Vamos ao encontro, aqui, de uma sugestão de Heidegger dizendo respeito à noção de Verstehen. Estamos lembrados de que, em Sein und Zeit, a teoria da “compreensão” não está mais vinculada à compreensão de outrem, mas torna-se uma estrutura do ser-no-mundo. Majs precisamente, é uma estrutura cujo exame vem após ao da Befindlichkeit; o momento do “compreender” responde dialeticamente ao ser em situação, como sendo a projeção dos possíveis mais adequados ao cerne mesmo das situações onde nos encontramos. Dessa análise, retenho a ideia de “projeção dos possíveis mais próximos” para aplicá-la à teoria do texto. De fato, o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único.

O mundo do texto de que falamos não é, pois, o da linguagem quotidiana. Neste sentido, ele constitui uma nova espécie de distanciamento que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Trata-se do distanciamento que a ficção introduz em nossa apreensão do real. Como vimos, um relato, um conto ou um poema não existem sem referente. Mas esse referente estabelece uma ruptura com o da linguagem quotidiana. Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real.

Conforme já mostrei em outra obra, tomando o exemplo da linguagem metafórica (P. Ricoeur, “La métaphore et le problème central de l’herméneutique”, Revue Philosophique de Louvain, 70, 1972, pp. 93-112), a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de a mimesis da realidade. A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythos, de uma “fábula”, que atinge sua mais profunda essência.

É este o terceiro tipo de distanciamento que a experiência hermenêutica deve incorporar.

E) Compreender-se diante da obra

Gostaria de considerar uma quarta e última dimensão da noção de texto. Anunciava-a na introdução dizendo que o texto é a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos. Este quarto tema marca a entrada em cena da subjetividade do leitor. Prolonga esse caráter fundamental de todo discurso de ser dirigido a alguém. Todavia, diferentemente do diálogo, esse vis-à-vis não é dado na situação de discurso. Ousaria mesmo dizer que ele é criado, instaurado, instituído pela própria obra. Uma obra se dá a seus leitores e cria, assim, para si, seu próprio vis-à-vis subjetivo.

Dir-se-á que tal problema já é bem conhecido da hermenêutica mais tradicional: é o problema da apropriação (Aneignung) ou da aplicação (Anwendung) do texto à situação presente do locutor. E é dessa forma que também o compreendo. Gostaria, no entanto, de ressaltar o quanto esse tema fica transformado quando o introduzimos depois dos precedentes.

Em primeiro lugar, a apropriação está dialeticamente ligada ao distanciamento típico da escrita. Esta não é abolida pela apropriação. Pelo contrário, é sua contrapartida. Graças ao distanciamento pela escrita, a apropriação não possui mais nenhum dos caracteres da afinidade afetiva com a intenção de um autor. A apropriação é exatamente o contrário da contemporaneidade e da congenitalidade: é compreensão pela distância, compreensão a distância.

Em seguida, a apropriação está dialeticamente ligada à objetivação típica da obra. Ela passa por todas as objetivações estruturais do texto. Na medida mesma em que não responde ao autor, responde ao sentido. Talvez seja nesse nível que a mediação operada pelo texto deixa-se compreender melhor. Contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do sujeito de conhecer-se a si mesmo por intuição imediata, devemos dizer que só nós compreendemos pelo grande atalho dos sinais de humanidade depositados nas obras de cultura. O que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo o que chamamos de o si, caso isso não fosse referido à linguagem e articulado pela literatura? O que parece mais contrário à subjetividade, e que a análise estrutural faz aparecer como a textura mesma do texto, é o próprio médium no qual, apenas, podemos nos compreender.

Sobretudo, porém, a apropriação possui por vis-à-vis aquilo que Gadamer chama de “a coisa do texto” e que chamo de “o mundo da obra”. Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo. A compreensão torna-se, então, o contrário de uma constituição de que o sujeito teria a chave. A este respeito, seria mais justo dizer que o si é constituído pela “coisa” do texto.

Sem dúvida, precisamos dar um passo à frente: assim como o mundo do texto só é real na medida em que é fictício, da mesma forma devemos dizer que a subjetividade do leitor só advém a ela mesma na medida em que é colocada em suspenso, irrealizada, potencializada, da mesma forma que o mundo manifestado pelo texto. Em outras palavras, se a ficção é uma dimensão fundamental da referência do texto, não possui menos uma dimensão fundamental da subjetividade do leitor. Só me encontro, como, leitor, perdendo-me. A leitura me introduz nas variações imaginativas do ego. A metamorfose do mundo, segundo o jogo, também é a metamorfose lúdica do ego.

Se isso é verdade, também o conceito de “apropriação” exige uma crítica interna, na medida em que permanece dirigido contra a Verfremdung. Com efeito, a metamorfose do ego, de que acabamos de falar, implica um momento de distanciamento até na relação de si a si. A compreensão torna-se, então, tanto desapropriação quanto apropriação. Uma crítica das ilusões do sujeito, à maneira marxista e freudiana, não só pode mas deve ser incorporada à compreensão de si.

A consequência, para a hermenêutica, é importante: não podemos mais opor hermenêutica e crítica das ideologias. A crítica das ideologias é o atalho que a compreensão de si deve necessariamente tomar, caso esta deixe-se formar pela coisa do texto, e não pelos preconceitos do leitor.

Portanto, precisamos transferir para o cerne mesmo da compreensão de si a dialética da objetivação e da compreensão que havíamos percebido antes no nível do texto, de suas estruturas, de seu sentido e de sua referência. Em todos os níveis da análise, o distanciamento é a condição da compreensão.

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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