Ricoeur (2000:3-4) – De que há lembrança? De quem é a memória?

Alain François

A fenomenologia da memória aqui proposta estrutura-se em torno de duas perguntas: De que há lembrança? De quem é a memória?

Essas duas perguntas são formuladas dentro do espírito da fenomenologia husserliana. Privilegiou-se, nessa herança, a indagação colocada sob o adágio bem conhecido segundo o qual toda consciência é consciência de alguma coisa. Essa abordagem “objetal” levanta um problema específico no plano da memória. Não seria ela fundamentalmente reflexiva, como nos inclina a pensar a prevalência da forma pronominal: lembrar-se de alguma coisa é, de imediato, lembrar-se de si? Entretanto, insistimos em colocar a pergunta “o que?” antes da pergunta “quem?”, a despeito da tradição filosófica, cuja tendência foi fazer prevalecer o lado egológico da experiência mnemonica. A primazia concedida por muito tempo à questão “quem?” teve o efeito negativo de conduzir a análise dos fenômenos mnemònicos a um impasse, uma vez que foi necessário levar em conta a noção de memória coletiva. Se nos apressarmos a dizer que o sujeito da memória é o eu, na primeira pessoa do singular, a noção de memória coletiva poderá apenas desempenhar o papel de conceito analógico, ou até mesmo de corpo estranho na fenomenologia da memória. Se não quisermos nos deixar confinar numa aporia inútil, será preciso manter em suspenso a questão da atribuição a alguém — e, portanto, a todas as pessoas gramaticais — do ato de lembrar-se, e começar pela pergunta “o que?”. Numa boa doutrina fenomenológica, a questão egológica — independentemente do que ego possa significar — deve vir depois da questão intencional, que é imperativamente a da correlação entre ato (”noese”) e o correlato visado (”noema”). Nosso desafio, nesta primeira parte dedicada à memória, sem considerar seu destino no decorrer da etapa historiográfica da relação com o passado, é poder levar tão longe quanto possível uma fenomenologia da lembrança, momento objetai da memória.

O momento da passagem da pergunta “o que?” para a pergunta “quem?” será ainda retardado por um desdobramento significativo da primeira pergunta entre um lado propriamente cognitivo e um lado pragmático. Neste aspecto, a história das noções e das palavras é instrutiva: os gregos tinham dois termos, mneme e anamnesis, para designar, de um lado, a lembrança como aparecendo, passivamente no limite, a ponto de caracterizar sua vinda ao espírito como afecção — pathos —, de outro lado, a lembrança como objeto de uma busca geralmente denominada recordação, recollection. A lembrança, alternadamente encontrada e buscada, situa-se, assim, no cruzamento de uma semântica com uma pragmática. Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir em busca de uma lembrança. Nesse sentido, a pergunta “como?” formulada pela anamnesis tende a se desligar da pergunta “o que?” mais estritamente formulada pela mneme. Esse desdobramento da abordagem cognitiva e da abordagem pragmática tem uma incidência maior sobre a pretensão da memória à fidelidade em relação ao passado: essa pretensão define o estatuto veritativo da memória, que será preciso, depois, confrontar com o da história. Enquanto isso, a interferência da pragmática da memória, em virtude da qual lembrar-se é fazer alguma coisa, exerce um efeito de confusão sobre toda a problemática veritativa (ou veridictiva): possibilidades de engano inserem-se inelutavelmente nos recursos dos usos e abusos da memória apreendida em seu eixo pragmático. A tipologia dos usos e abusos, que vamos propor no capítulo 2, sobrepor-se-á à tipologia dos fenômenos mnemônicos do capítulo 1.

Ao mesmo tempo, a abordagem pragmática da anamnesis propiciará a transição adequada da pergunta “o que?”, tomada no sentido estrito de uma investigação dos recursos cognitivos da lembrança, para a pergunta “quem?”, centrada na apropriação da lembrança por um sujeito capaz de se lembrar de si.

Será este o nosso caminho: do “o que?” ao “quem?”, passando pelo “como?” — da lembrança à memória refletida, passando pela reminiscencia.

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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