Ricoeur (1991:71-72) – corpo próprio

Lucy Moreira Cesar

Não se pode, na minha opinião, a não ser saindo da filosofia da linguagem e interrogando-se sobre a espécie de ser que pode assim prestar-se a uma dupla identificação como pessoa objetiva e como sujeito que reflete. O fenômeno ancoragem sugere por ele próprio a direção na qual precisaria engajar-se; é a mesma que a análise precedente já indicou, a saber, a significação absolutamente irredutível do corpo próprio. Lembramos que a possibilidade de atribuir à mesma coisa predicados físicos e psíquicos nos parecera fundada numa estrutura dupla do corpo próprio, a saber, seu estatuto de realidade física observável e sua dependência ao que Husserl chama na quinta Meditação cartesiana, a “esfera do próprio” ou do “meu”. O mesmo alívio duplo de corpo próprio funda a estrutura mista do “eu-um tal”; como corpo entre os corpos, ele constitui um fragmento da experiência do mundo; como meu, ele divide o status do “eu” compreendido como ponto de referência limite do mundo; em outras palavras, o corpo é ao mesmo tempo um fato do mundo e o órgão de um sujeito que não pertence aos objetos dos quais ele fala. Essa estranha constituição do corpo próprio estende-se do sujeito da enunciação ao próprio ato da enunciação: como voz impulsionada para fora pelo sopro e articulada pela fonação e toda a gesticulação, a enunciação divide a sorte dos corpos materiais. Expressão do sentido visado por um sujeito falante, a voz é o veículo do ato de enunciação enquanto remete ao “eu”, centro de perspectiva insubstituível sobre o mundo.

[RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Tr. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991, p. 71-72]

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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