Ricoeur (1991:151-152) – identidade em Locke

Lucy Moreira Cesar

1. Os filósofos de língua inglesa e de cultura analítica aprenderam em primeiro lugar em Locke e em Hume que sem o fio condutor da distinção entre dois modelos de identidade e sem o auxílio da mediação narrativa, a questão da identidade pessoal perde-se nos arcanos de dificuldades e de paradoxos paralisantes.

Do primeiro, a tradição ulterior reteve a equação entre identidade pessoal e memória. Mas é preciso ver ao preço de que inconsistência na argumentação e de que improbabilidade na ordem das consequências essa equação foi paga. Em primeiro lugar, inconsequência na argumentação: no começo do famoso capítulo XXVII do Ensaio filosófico concernente ao entendimento humano 1 (2.a ed., 1964), intitulado “Identidade e diversidade”, Locke introduz um conceito de identidade que parece escapar à nossa alternativa da mesmidade e da ipseidade; após ter dito que a identidade resulta de uma comparação, Locke introduz a ideia singular da identidade de uma coisa consigo mesma (palavra por palavra: de mesmidade consigo mesmo, sameness with itself); é, com efeito, comparando uma coisa consigo mesma em tempos diferentes que formamos as ideias de identidade e de diversidade; “quando perguntamos se uma coisa é a mesma (same) ou não, é sempre fazendo referência a alguma coisa que existiu em tal tempo e tal lugar, do qual estava certo que nesse momento essa coisa era idêntica a si mesma (the same with itself). Essa definição parece acumular os caracteres da mesmidade, em virtude da operação de comparação, e os da ipseidade, em virtude do que foi coincidência instantânea, mantida através do tempo, de uma coisa consigo mesma. Mas a série da análise decompõe as duas valências da identidade. Na primeira série de exemplos — o navio do qual mudamos todas as peças, o carvalho do qual acompanhamos o crescimento de bolota a árvore, o animal e mesmo o homem do qual seguimos o desenvolvimento do nascimento à morte — é a mesmidade que prevalece; o elemento comum a todos esses exemplos é a permanência da organização, a qual, é verdade, não pressupõe, segundo Locke, nenhum substancialismo. Mas, no momento de chegar à identidade pessoal que Locke não confunde com a de um homem, é à reflexão instantânea que ele destina a “mesmidade consigo mesmo” alegada pela definição geral. Resta somente desenvolver o privilégio da reflexão do instante à duração; é suficiente considerar a memória (151) como a expansão retrospectiva da reflexão tão longe quanto ela pode se estender no passado; em favor dessa mutação da reflexão na memória, a “mesmidade consigo mesmo” pode estender-se através do tempo. Dessa maneira, Locke acreditou poder introduzir uma cesura no curso de sua análise sem ter de abandonar seu conceito geral de “mesmidade (de uma coisa) consigo mesma”. E, no entanto, a curva da reflexão e da memória marcava de fato uma desordem conceitual onde a ipseidade substituia silenciosamente a mesmidade.

Mas não foi quanto à coerência do argumento que Locke suscitou maior perplexidade: a tradição creditou-lhe a invenção de um critério de identidade, a saber, a identidade psíquica, a que poderemos daqui em diante opor o critério de identidade corporal, do qual realçava de fato a primeira série de exemplos em que prevalecia a permanência de uma organização observável de fora. Uma discussão sobre os critérios da identidade ocupará de hoje em diante o proscênio, suscitando discursos opostos e igualmente plausíveis em favor de um ou de outro. Assim, a Locke e seus partidários oporemos regularmente as aporias de uma identidade suspensa apenas pelo testemunho da memória; aporias psicológicas concernentes aos limites, as intermitências (durante o sono, por exemplo), as perdas da memória, mas também as aporias mais propriamente ontológicas: antes de dizer que a pessoa existe e por isso é que ela se lembra, não seria mais plausível — pergunta J. Butler 2 — destinar a continuidade dá memória à existência contínua de uma alma-substância? Sem tê-lo previsto, Locke realçava o caráter aporético da própria questão da identidade. Testemunhando mais que tudo os paradoxos que ele assumia sem franzir a sobrancelha mas que seus sucessores transformaram em provas de indeterminação: seja o caso de um príncipe do qual transplantamos a memória para o corpo de um sapateiro remendão; este se torna o príncipe que ele se lembra ter sido ou permanece o sapateiro remendão que os outros homens continuam a observar? Locke, coerente consigo mesmo, decide em favor da primeira solução. Mas as leituras modernas, mais sensíveis à colisão entre dois critérios opostos de identidade, concluirão pela indeterminação do caso. Dessa maneira, a era dos puzzling cases estava aberta, a despeito da certeza de Locke. Voltaremos a esse assunto mais adiante 3.

Original

  1. Essai philosophique concernant fentendement humain, trad. fr. de P. Coste, Paris, Vrin, 1972.[↩]
  2. J. Butler, “Of personal identity”, The analogy of religion (1736) retomado em J. Perry (ed.), Personal identity, University of California Press, 1975, pp. 99-105.[↩]
  3. E não em Locke mas em seus sucessores que a situação criada pela hipótese da transplantação de uma mesma alma para um outro corpo começou a parecer mais indeterminada do que simplesmente paradoxal, isto é, contrária ao senso comum. Pois, como a memória do príncipe poderia não afetar o corpo do sapateiro no plano da voz, dos gestos, das posturas? E como situar a expressão do caráter habitual do sapateiro em relação à da memória do príncipe? O que se tornou problemático após Locke e não era para esse último foi a possibilidade de distinguir entre dois critérios de identidade: a identidade dita psíquica e a identidade dita corporal, como se a expressão da memória não fosse um fenômeno corporal. De fato, o vício inerente ao paradoxo de Locke, além da circularidade eventual do argumento, é uma descrição imperfeita da situação criada pela transplantação imaginária.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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