Ricoeur (1985:95-96) – Sorge e ser-um-todo

Roberto Leal Ferreira

Por que é preciso entrar na questão da temporalidade pela questão da “possibilidade de ser-um-todo” ou, como diremos de modo equivalente, de “ser-integral”? À primeira vista, a noção de Cuidado não parece exigi-lo; parece até não admiti-lo. A primeira implicação temporal que ela exibe é, com efeito, a do ser-em-frente-a-si (das Sichvorweg), a qual não comporta nenhum fechamento, muito pelo contrário, sempre deixa algo em sursis, em suspenso, e permanece constantemente incompleta, em virtude até do caráter de poder-ser (Seinskönnen) do ser-aí: se a questão do “ser integral” detém, no entanto, um privilégio, isso ocorre na medida em que a fenomenologia hermenêutica do tempo tem como objetivo a unidade articulada dos três momentos do futuro, do passado, do presente. Essa unidade do tempo, Agostinho a fazia jorrar do presente por triplicação.6 Ora, o presente não pode, segundo Heidegger, assumir essa função de articulação e de dispersão, porque ele é a categoria temporal menos apta a uma análise originária e autêntica, em virtude de seu parentesco com as formas decaídas da existência, a saber, a propensão do ser-aí a se compreender em função dos seres dados (vorhanden) e manejáveis (zuhanden), que são o objeto de seu cuidado presente, de sua preocupação. Já aqui, o que parece mais próximo aos olhos de uma fenomenologia direta mostra-se o mais inautêntico; e o autêntico, o mais dissimulado.

Se, portanto, admitirmos que a questão do tempo é em primeiro lugar a questão de sua integralidade estrutural, e se o presente não é a modalidade apropriada para essa busca de totalidade, resta encontrar no caráter de avanço sobre si mesmo do Cuidado o segredo de sua própria completude. É então que a ideia de um ser-para-o-fim (zum Ende sein) se propõe como o existencial que traz a marca de seu próprio fechamento interno. O ser-para-o-fim tem de notável o fato de que “pertence” [SZ:234] ao que permanece em sursis e em suspenso no poder-ser do ser-aí. Ora, “o ‘fim’ do ser-no-mundo é a morte” (234): “‘Acabar’, no sentido de morrer, constitui a totalidade do ser-aí” (240).1 (p. 117-118)

Original

  1. Não vou repetir aqui as análises extraordinariamente cuidadosas com as quais Heidegger distingue o ser-para-o-fim de todos os fins que, na linguagem comum, atribuímos a eventos, processos biológicos ou históricos e, em geral, a todas as maneiras pelas quais coisas dadas e gerenciáveis chegam a um fim. Tampouco as análises que concluem que a morte de outros é intransferível para a própria morte e, portanto, que a própria morte é intransferível (“a morte é essencialmente sempre minha”). Também não repetiremos as análises que distinguem a possibilidade característica do ser-para-a-morte de todas as formas de possibilidade usadas na linguagem cotidiana, na lógica e na epistemologia. A quantidade de precauções acumuladas contra o mal-entendido por uma análise que, partindo de proposições apofáticas (§ 46-49, a morte não é isto, não é aquilo…), procede a um “esboço” (Vorzeichnung, § 50 (ET50)) que se torna, somente no final do capítulo, a “projeção existencial (Entwurf) de um autêntico ser-para-a-morte” (título do § 53 (ET53)). De acordo com essa projeção, o ser-para-a-morte constitui uma possibilidade de ser-aí, uma possibilidade, é verdade, sem paralelo, em direção à qual somos atraídos por uma expectativa que é, ela mesma, única em seu tipo, – uma possibilidade que pode ser considerada “a mais extrema” (äusserste [SZ:252]) e “a mais própria” (eigenste [SZ:263]) de nosso ser-aí.[↩]
  2. Cette ambition de saisir le temps dans son ensemble est la reprise existentiale du problème bien connu de l’unité du temps que Kant tient pour une des présuppositions majeures de l’Esthétique : Il n’y a qu’un temps et tous les temps en sont des parties. Mais, selon Heidegger, cette unité singulière est prise au niveau du temps successif, dont nous verrons qu’il résulte du nivellement de l’intratemporalité, à savoir la configuration temporelle la moins originaire et la moins authentique. Il fallait donc reprendre à un autre niveau de radicalité la question de la totalité.[↩]
  3. Je ne répéterai pas ici les analyses extraordinairement soigneuses par lesquelles Heidegger distingue l’être-pour-la-fin de toutes les fins que, dans le langage ordinaire, nous assignons à des événements, des processus biologiques ou historiques, et en général à toutes les manières dont les choses données et maniables se terminent. Ni non plus les analyses qui concluent au caractère non transférable de la mort d’autrui au mourir propre, donc au caractère non transférable de la mort propre (« la mort est essentiellement toujours la mienne »). On ne reprendra pas non plus les analyses qui distinguent la possibilité caractéristique de l’être-pour-la-mort de toutes les formes de possibilités en usage dans le langage quotidien, en logique et en épistémologie. On ne dira jamais assez la somme des précautions accumulées contre la mécompréhension par une analyse qui, partant de propositions apophatiques (§ 46-49, la mort n’est pas ceci, n’est pas cela
    ), procède à une « ébauche » (Vorzeichnung, § 50 (ET50)) qui devient, seulement à la fin du chapitre, la « projection (Entwurf) existentiale d’un être authentique-pour-la-mort » (titre du § 53 (ET53)). Selon cette projection, l’être-pour-la-mort constitue une possibilité de l’être-là, possibilité il est vrai sans pareille, vers laquelle nous sommes tendus par une attente elle-même unique en son genre, — possibilité qu’on peut dire « la plus extrême » (äusserste (252)) et « la plus propre » (eigenste (263)) de notre pouvoir-être.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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