- Roberto Leal Ferreira
- Original
Roberto Leal Ferreira
É só, como dissemos, no final do capítulo III da segunda seção, §§ 65 (art78)-66 (art79), que Heidegger trata tematicamente da (temporalidade) em sua relação com o (Cuidado). Nessas páginas, de uma densidade extrema, Heidegger ambiciona ir além da análise agostiniana do triplo presente e mais longe do que a análise husserliana da (retenção)-(protensão), as quais, como vimos mais acima, ocupam o mesmo lugar fenomenológico. A originalidade de Heidegger é procurar no próprio Cuidado o princípio da pluralização do tempo como futuro, passado e presente. Desse deslocamento na direção do mais originário resultarão a promoção do futuro ao lugar ocupado até então pelo presente, e uma reorientação total das relações entre as três dimensões do tempo. O que exigirá o próprio abandono dos termos “(futuro)”, “(passado)”, “(presente)”, que Agostinho não acreditara dever pôr em questão, por respeito à linguagem comum, a despeito de sua audácia em falar do presente do futuro, do presente do passado e do presente do presente.
O que buscamos, como é dito no início do § 65 (art78), é o (sentido) (Sinn) do Cuidado. Questão, não de visão, mas de (compreensão) e de (interpretação): “Radicalmente falando, o ‘sentido’ significa o que orienta (woraufhin) o projeto primordial da compreensão do ser”; “o sentido significa o oriente (woraufhin) do projeto primordial, em virtude de que algo pode ser concebido como (als) o que é, em sua possibilidade” [SZ:324].1
Encontramos, pois, entre a articulação interna do Cuidado e a triplicidade do tempo uma relação quase kantiana de condicionalidade. Mas o “tornar-possível” heideggeriano difere da condição kantiana de possibilidade, pelo fato de que o próprio Cuidado possibilita toda a experiência humana. (117)
Essas considerações sobre a possibilitação, inscrita no Cuidado, já anunciam o primado do futuro no percurso da estrutura articulada do tempo. O elo intermediário do raciocínio é fornecido pela análise precedente da antecipação resoluta, ela própria oriunda da meditação sobre o (ser-para-o-fim) e sobre o (ser-para-a-morte). Mais do que o primado do futuro: a reinscrição do termo “futuro”, tomado da linguagem cotidiana, no idioma apropriado à fenomenologia hermenêutica. Um advérbio, melhor do que um substantivo, serve aqui de guia, a saber, o zu de Sein-zum-Ende e de Sein-zum-Tode, que podemos aplicar sobre o zu da expressão corrente Zu-kunft (por vir). Ao mesmo tempo, o kommen — “vir” — assume também um relevo novo, ao juntar a potência do verbo à do advérbio, em lugar do substantivo “futuro”; no Cuidado, o ser-aí visa advir a si mesmo segundo suas possibilidades mais próprias. Advir a (Zukommen) é a raiz do futuro: “Deixar-se advir a si (sich auf sich zukommen-lassen) é o fenômeno originário do por-vir (Zukunft)” (325). É essa a possibilidade inclusa na (antecipação) resoluta: “A antecipação (Vorlaufen) torna o ser-aí autenticamente por-vir, de tal sorte que o ser-aí, como ente desde sempre, advém a si, ou seja, é em seu ser enquanto tal por-vir (Zukünftig) (325).2
A significação nova que reveste o futuro permite discernir, entre as três dimensões do tempo, relações inusitadas de íntima implicação mútua.
É pela implicação do passado pelo futuro que Heidegger começa, adiando, assim, a relação de ambos com o presente, que estava no centro das análises de Agostinho e de Husserl.
A passagem do futuro ao passado cessa de constituir uma transição extrínseca, porque o ter-sido parece chamado pelo por-vir e, em certo sentido, contido nele. Não há reconhecimento em geral sem reconhecimento de dívida e de responsabilidade; daí que a própria resolução implique que assumamos a culpa e seu momento de derrelição (Geworfenheit). Ora, “assumir a derrelição significa que o ser-aí seja autenticamente no estado em que a cada vez ele já era (in dem, wie es je schon war)” (325). O importante aqui é que o imperfeito do verbo ser — “era” — e o (118) advérbio que o sublinha — “já” — não se separam do ser, mas que o “tal como ele já era” traz a marca do “eu sou”, como é possível dizê-lo em alemão: “ich bin-gewesen” (326) (“eu sou-sido”). Podemos então dizer, abreviando: “Autenticamente por-vir é o ser-aí autenticamente tendo-sido” (Ibid. ). Essa abreviação é a mesma do retorno sobre si inerente a toda tomada de responsabilidade. Assim, o tendo-sido procede do por-vir. O tendo-sido, e não o passado, se for preciso entender com isso o passado das coisas passadas que opomos, no plano da presença dada e da maneabilidade, à abertura das coisas futuras. Não consideramos evidente que o passado é determinado e o futuro, aberto? Mas essa assimetria, separada de seu contexto hermenêutico, não permite entender a relação intrínseca do passado com o futuro.3
Quanto ao presente, longe de gerar o passado e o futuro ao se multiplicar, como em Agostinho, é a modalidade da temporalidade cuja autenticidade é mais dissimulada. Há, por certo, uma verdade da (cotidianidade) em seu comércio com as coisas dadas e manejáveis. Nesse sentido, o presente é realmente o tempo da preocupação. Mas ele não deve ser concebido com base no modelo da presença dada das coisas de nossa preocupação, mas como uma implicação do Cuidado. É por intermédio da situação, oferecida a cada vez à resolução, que podemos repensar o presente de modo existencial; será preciso, então, falar de “presentar”, no sentido de “tornar presente”, mais do que de presente:4 “É apenas como presente (Gegenwart), tomado no sentido de ‘presentar’ (gegenwärtigen), que a resolução pode ser o que é, a saber, que ela se deixa encontrar sem escapatória pelo fato de que só se apreende ao agir” (326),
Por vir e retorno a si são, assim, incorporados à resolução, uma vez que esta se insere na situação tornando-a presente, presentando-a. [1997:117-119]
Original
- O programa inicial de Ser e tempo, explicitamente declarado na introdução”, era reconduzir à “questão do sentido do ser” ao final da analítica do (ser-aí). Se a obra publicada não preenche esse programa, a hermenêutica do Cuidado preserva pelo menos a sua intenção, vinculando com força o projeto inerente à Cura ao “projeto primordial de compreensão do ser” (324). Os projetos humanos, com efeito, só são projetos em virtude desse enraizamento último: “Esses projetos encerram em si um Oriente (ein Voraufhin) de que se nutre, por assim dizer, a compreensão do ser” (Ibid.).[
]
- O prefixo vor tem a mesma força expressiva que o zu de Zukunft. Encontra-mo-lo incluído na expressão Sich vorweg, em-frente-de-si, que define o Cuidado em toda sua amplidão, em equivalência com o vir-a-si.[
]
- Essa distinção entre o ter-sido, intrinsecamente implicado no por-vir, e o passado, extrinsecamente distinguido do futuro, será da maior importância quando discutirmos o estatuto do passado histórico (seção II, cap. III).[
]
- Poder-se-ia dizer: presentificar (Marianne Simon, op. cit, p. 82): mas o termo Já foi empregado, num contexto husserliano, para traduzir o Vergegenwärtigen, mais próximo da representação do que da presentação.[
]