Ricoeur (1977) – Schleiermacher

Japiassu

O verdadeiro movimento de desregionalização começa com o esforço para se extrair um problema geral da atividade de interpretação cada vez engajada em textos diferentes. O discernimento dessa problemática central e unitária deve-se à obra de F. Schleiermacher. O que há, antes dele, é, de um lado, uma filologia dos textos clássicos, sobretudo os da antiguidade greco-latina, e, do outro, uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e o Novo Testamentos. Em cada um desses dois domínios, o trabalho de interpretação varia conforme a diversidade dos textos. Portanto, uma hermenêutica geral exige que nos elevemos acima das aplicações particulares e que discernamos as operações comuns aos dois grandes ramos da hermenêutica. Contudo, para conseguir isso, devemos nos elevar não somente acima da particularidade dos textos, mas da particularidade das regras, das receitas, entre as quais se dispersa a arte de compreender. A hermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a exegese e a filologia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma “tecnologia” que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.

Ora, essa subordinação das regras particulares da exegese e da filologia à problemática geral do compreender constituía uma reviravolta inteiramente análoga à que fora operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da natureza. A este respeito, podemos afirmar que o kantismo constitui o horizonte filosófico mais próximo da hermenêutica. Como se sabe, o espírito geral da Crítica pretende inverter a relação entre uma teoria do conhecimento e uma teoria do ser; deve-se medir a capacidade do conhecer antes de se enfrentar a natureza do ser. É compreensível que o clima kantiano tenha sido o adequado à formação do projeto de referir as regras de interpretação, não à diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à operação central que unifica a diversidade da interpretação. Se Schleiermacher não está pessoalmente consciente de operar na ordem exegética e filológica o tipo de revolução copérnica operada por Kant na ordem da filosofia da natureza, Dilthey estará perfeitamente consciente disso, no clima neokantiano do fim do século XIX. Todavia, foi necessário que se passasse antes por uma extensão, cuja ideia Schleiermacher ainda não possuía, ou seja, pela inclusão das ciências exegéticas e filológicas no interior das ciências históricas. Somente no interior dessa inclusão a hermenêutica vai aparecer como uma resposta global trazida à grande lacuna do kantismo; ela foi percebida, pela primeira vez, por J. G. Herder e reconhecida, com toda lucidez, por E. Cassirer; consistia em dizer que, numa filosofia crítica, nada há entre a física e a ética.

Mas não se tratava apenas de preencher uma lacuna do kantismo. Tratava-se de revolucionar profundamente sua concepção do sujeito. Por haver-se limitado à busca das condições universais da objetividade na física e na ética, o kantismo só conseguiu evidenciar um espírito impessoal, portador das condições de possibilidade dos juízos universais. A hermenêutica não podia acrescentar algo ao kantismo sem receber da filosofia romântica sua mais fundamental convicção, a saber, a de que o espírito é o inconsciente criador trabalhando em individualidades geniais. Ao mesmo tempo, o programa hermenêutico de Schleiermacher era portador de uma dupla marca — romântica e crítica. Romântica por seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu desejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão. Talvez toda hermenêutica fique sempre marcada por essa dupla filiação romântica e crítica, crítica e romântica. Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão em nome do famoso adágio: “há hermenêutica, onde houver não-compreensão”; romântica é o intuito de “compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu” (p. 56).

Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que foi uma aporia, tanto quanto um primeiro esboço, que Schleiermacher legou à sua descendência nas notas de hermenêutica que jamais conseguiu transformar em obra acabada. O problema com o qual se defrontou foi o da relação entre duas formas de interpretação: a interpretação “gramatical” e a interpretação “técnica”. Eis uma distinção constante em sua obra, mas cuja significação não cessa de deslocar-se no decurso dos anos. Antes da edição Kimmerle 1, publicada em Heidelberg em 1959, não eram conhecidas as notas de 1804 e dos anos seguintes. Por isso atribuiu-se a Schleiermacher uma interpretação psicológica que, no início, era equivalente à interpretação gramatical. A primeira, a interpretação gramatical, apoia-se nos caracteres do discurso que são comuns a uma cultura; a segunda, a interpretação técnica, dirige-se à singularidade, até mesmo à genialidade, da mensagem do escritor. Ora, se as duas interpretações possuem direitos iguais, não podem ser praticadas ao mesmo tempo. Schleiermacher precisa: considerar a língua comum é esquecer o escritor, compreender um autor singular é esquecer sua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos aquilo que é comum, ou então percebemos o que é próprio. A primeira interpretação é chamada de objetiva, pois versa sobre os caracteres linguísticos distintos do autor, mas também negativa, pois indica simplesmente os limites da compreensão; seu valor crítico refere-se apenas aos erros concernentes ao sentido das palavras. A segunda interpretação é chamada de técnica, sem dúvida por causa do projeto de uma Kunstlehre, de uma tecnologia.

É nessa segunda interpretação que se realiza o projeto mesmo de uma hermenêutica. Trata-se de atingir a subjetividade daquele que fala, ficando a língua esquecida. A linguagem torna-se, aqui, o órgão a serviço da individualidade. Essa interpretação é chamada de positiva, porque atinge o ato de pensamento que produz o discurso. Não somente uma exclui a outra, mas cada uma exige talentos distintos, como o revelam os excessos respectivos de ambas. O excesso da primeira gera o pedantismo; o da segunda, a nebulosidade. Somente nos últimos textos de Schleiermacher a segunda interpretação ganha um primado sobre a primeira e o caráter adivinhatório da interpretação enfatiza seu caráter psicológico. Todavia, mesmo neles, a interpretação psicológica — este termo substitui o de interpretação técnica — jamais se limita a uma afinidade com o autor, mas implica motivos críticos na atividade de comparação: uma individualidade só pode ser apreendida por comparação e por contraste. Assim, também a segunda hermenêutica comporta elementos técnicos e discursivos. Não se apreende jamais diretamente uma individualidade, mas somente sua diferença com relação a outra e a si mesma. Complica-se, assim, a dificuldade de se demarcar as duas hermenêuticas pela superposição, ao primeiro par de opostos, o gramatical e o técnico, de um segundo par de opostos, a adivinhação e a comparação. Os “Discursos Acadêmicos” 2 dão testemunho desse extremo embaraço do fundador da hermenêutica moderna. Proponho-me a mostrar, no segundo estudo, que tais embaraços só podem ser superados se elucidarmos a relação da obra com a subjetividade do autor e se, na interpretação, deslocarmos a ênfase da busca patética das subjetividades subterrâneas em direção ao sentido e à referência da própria obra. Contudo, precisamos, antes, levar mais adiante a aporia central da hermenêutica, considerando a ampliação decisiva pela qual Dilthey a fez passar subordinando a problemática filológica e exegética à problemática histórica. É essa ampliação, no sentido de uma maior universalidade, que prepara o deslocamento da epistemologia em direção à ontologia, no sentido de uma maior radicalidade.

Original

  1. Cf. F. Schleiermacher, Hermeneutik, Heidelberg, Ed. Kimmerle, §§ 15 e 16; G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen, 1960, p. 173.[↩]
  2. In: Schleiermacher Werke I, Leipzig, 1928.[↩]
  3. Cf. F. Schleiermacher, Hermeneutik, éd. M. Kimmerlé, Heidelberg, 1959, § 15 et 16 ; cf. H.G. Gadamer, Wahrheit, op. cit., p. 173.[↩]
  4. Cf. F. Schleiermacher, Hermeneutik, op. cit., p. 56.[↩]
  5. Cette édition a paru dans les Abhandlungen der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, Phil-hist. Klasse, 1959/2.[↩]
  6. Cf. Abhandlungen gelesen in der Königlichen Akademie der Wissenschaften, in Schleiermachers Werke, I, éd. O. Braun et J. Bauer, Leipzig, 19282 (reprint, Aalen, 1967). p. 374 sq.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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