Ricoeur (1977) – Reflexão critica sobre a hermenêutica

Meu intuito não é o de fundar a hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias num super-sistema que as englobaria. Como disse desde o início, cada uma fala de um lugar diferente. E é isso que realmente ocorre. Todavia, pode . ser exigido que cada uma delas reconheça a outra, não como uma posição estranha e puramente adversa, mas como uma formulação, a seu modo, de uma reivindicação legítima.

É nesse espírito que retomo as duas questões apresentadas na Introdução.

A que condição uma filosofia hermenêutica pode, em si mesma, dar conta da exigência de uma crítica das ideologias? A preço de que reformulação ou de refundição de seu programa?

A que condição uma crítica das ideologias é possível? Pode ser, em última análise, desprovida de preconceitos hermenêuticos?

A primeira questão coloca em jogo a capacidade da hermenêutica de justificar uma instância crítica em geral. Como pode haver crítica em hermenêutica?

Em primeiro lugar, observo que reconhecer a instância crítica é uma veleidade da hermenêutica incessantemente reiterada, mas sem cessar abortada. Com efeito, a partir de Heidegger, a hermenêutica está completamente engajada no movimento de volta ao fundamento que, de uma questão epistemológica concernente as condições de possibilidade das “ciências do espírito”, leva à estrutura ontológica do compreender. Podemos então nos perguntar se é possível o trajeto de retorno. No entanto, é sobre esse trajeto de retorno que poderia impor-se e revelar-se a afirmação de que as questões de crítica exegético-histórica são questões “derivadas”, de que o círculo hermenêutico, no sentido dos exegetas, está “fundado” sobre a estrutura de antecipação da compreensão no plano ontológico fundamental.

Todavia, a hermenêutica ontológica parece incapaz, por razões estruturais, de revelar essa problemática de retorno. No próprio Heidegger, a questão é abandonada logo que é colocada. Em O ser e o tempo lemos o seguinte: “O círculo característico da compreensão (…) encerra uma autêntica possibilidade do mais original conhecer; só a apreendemos corretamente se a explicitação (Auslegung = interpretação) se der por tarefa primeira, permanente e última, impedir que lhe sejam impostas suas aquisições e visões prévias, bem como suas antecipações por quaisquer intuições (Einfälle) e noções populares, para assegurar seu tema científico mediante o desenvolvimento dessas antecipações, segundo as coisas mesmas” (p. 153). Por conseguinte, assim é colocada, no princípio, a distinção entre a antecipação segundo as coisas mesmas e uma antecipação oriunda das ideias arrevesadas e das noções populares (Volksbegriffe). Esses dois termos possuem um parentesco visível com os preconceitos por “precipitação” e por “prevenção”. Mas como podemos ir adiante, de vez que declaramos, logo depois, que “os pressupostos ontológicos de todo conhecimento histórico transcendem, essencialmente, a ideia de rigor própria às ciências exatas”, e que omitimos a questão do rigor próprio às ciências históricas? A preocupação de enraizar o círculo mais fundo que toda epistemologia impede-nos de repetir a questão epistemológica depois da ontologia.

Significaria isto que não há em Heidegger nenhum desenvolvimento que corresponda ao momento crítico de uma epistemologia? Sim, mas esse desenvolvimento se aplica alhures. Ao passar da Analítica do Dasein, à qual ainda pertence a teoria do compreender e do interpretar, à teoria da temporalidade e da totalidade, à qual pertence a segunda meditação sobre o compreender (§ 63), parece que todo o esforço crítico é utilizado no trabalho de des-construção da metafísica. E compreendemos por que: desde que a hermenêutica se torna hermenêutica do ser — do sentido do ser -, a estrutura de antecipação própria à questão do sentido do ser é fornecida pela história da metafísica, que ocupa justamente o lugar do preconceito. A partir de então, a hermenêutica do ser revela todos os seus recursos críticos em seu debate com a substância grega e medieval, com o cogito cartesiano e kantiano. O confronto com a tradição metafísica do Ocidente ocupa o lugar de uma crítica dos preconceitos. Em outras palavras, numa perspectiva heideggeriana, a única crítica interna que podemos conceber como parte integrante do empreendimento de desocultamento é a des-construção da metafísica. E uma crítica propriamente epistemológica só pode ser reassumida indiretamente, na medida em que podem ser discernidos resíduos metafísicos operando até mesmo nas ciências pretensamente positivas ou empíricas. Todavia, essa crítica dos preconceitos de origem metafísica não pode ocupar o lugar de um verdadeiro confronto com as ciências humanas, com sua metodologia e com suas pressuposições epistemológicas. Em outros termos, é a preocupação lancinante com a radicalidade que nos impede de fazer o trajeto de retorno da hermenêutica geral às hermenêuticas regionais: filologia, história, psicologia das profundezas, etc.

Quanto a Gadamer, é certo que tenha compreendido perfeitamente a urgência dessa “dialética descendente”, do fundamento para o derivado. Por isso, declara: “Poderemos nos interrogar sobre as consequências que acarreta, para a hermenêutica das ciências do espírito, o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular do compreender da temporalidade do Dasein (Vérité et Méthode, p. 250). São essas consequências, na realidade, que nos interessam. Porque é no movimento de derivação que a partilha entre pré-compreensão e preconceito constitui problema, e que novamente surge a questão crítica, no cerne mesmo da compreensão. Assim, ao falar dos textos de nossa cultura, Gadamer não cessa de insistir nesse fato: esses textos são significantes, por eles mesmos e há uma “coisa do texto” que se dirige a nós. Mas como deixarmos falar a “coisa do texto” sem enfrentarmos a questão crítica da mistura da pré-compreensão com o preconceito?

Ora, a meu ver, a hermenêutica de Gadamer não está em condições de engajar-se a fundo nesse caminho, não somente porque, como em Heidegger, todo o esforço do pensamento está investido na radicalização do problema do fundamento, mas porque a experiência hermenêutica, em si mesma, evita lançar-se nos caminhos do reconhecimento de toda instância crítica. A experiência fundamental que determina o lugar de onde a hermenêutica faz sua reivindicação de universalidade contém a refutação do “distanciamento alienante” que comanda a atitude objetivante das ciências humanas. Por conseguinte, toda a obra toma um caráter dicotômico que se revela até mesmo no título: Verdade e método. A alternativa prima sobre a conjunção. É essa situação inicial de alternativa, de dicotomia que, a meu ver, impede-nos de reconhecer realmente a instância crítica e, por conseguinte, de fazer justiça a uma crítica das ideologias, expressão moderna e pós-marxista da instância crítica.

Minha própria interrogação procede dessa constatação. O que me pergunto é se não conviria deslocar o lugar inicial da questão hermenêutica, reformular a questão de base da hermenêutica, de tal forma que certa dialética entre a experiência de pertença e o distanciamento alienante torne-se a própria mola, a chave da vida interna da hermenêutica.

A ideia de tal deslocamento do lugar inicial da questão hermenêutica me é sugerida pela história mesma do problema hermenêutico. Ao longo dessa história, a ênfase sempre foi dada à exegese, à filologia, vale dizer, ao tipo de relação com a tradição que se funda sobre a mediação de textos, de documentos, de monumentos cujo estatuto é semelhante ao dos textos. Schleiermacher é exegeta do Novo Testamento e tradutor de Platão. Quanto a Dilthey, vê a especificidade da interpretação (Auslegung), com referência à compreensão direta de outrem (Verstehung), no fenômeno da fixação pela escrita e, mais geralmente, da inscrição.

Ao retornarmos, assim, a uma problemática do texto, da exegese e da filologia, parece que restringimos a visada, o alcance e o ângulo de visão da hermenêutica. Todavia, como toda reivindicação de universalidade é emitida de algum lugar, podemos esperar que a restauração do elo da hermenêutica com a exegese faça aparecer, por sua vez, traços de universalidade que, sem contradizer realmente a hermenêutica de Gadamer, retificam-na num sentido decisivo para a solução do debate com a crítica das ideologias.

Gostaria de esboçar quatro temas que constituem uma espécie de complemento crítico à hermenêutica das tradições.

1. O distanciamento, no qual essa hermenêutica tende a ver uma espécie de decadência ontológica, aparece como um componente positivo do ser para o texto. Ele pertence propriamente à interpretação, não como seu contrário, mas como sua condição. Esse movimento de distanciamento está implicado na fixação, pela escrita, e em todos os fenômenos comparáveis, na ordem da transmissão do discurso. Com efeito, a escrita de forma alguma se reduz à fixação material do discurso: esta é a condição de um fenômeno muito mais fundamental, o da autonomia do texto. Autonomia tríplice: com referência à intenção do autor, à situação cultural e a todos os condicionamentos sociológicos da produção do texto; e, enfim, ao destinatário primitivo. O que significa o texto não coincide mais com aquilo que o autor queria dizer. Significação verbal e significação mental possuem destinos diferentes. Essa primeira modalidade de autonomia já implica a possibilidade de a “coisa do texto” escapar ao horizonte intencional limitado de seu autor, e de o mundo do texto fazer desmoronar o mundo de seu autor.

Todavia, o que é verdadeiro das condições psicológicas, também o é das condições sociológicas, embora o que possa liquidar o autor esteja menos pronto a fazer a mesma operação na ordem sociológica. No entanto, o que é próprio da obra de arte, da obra literária, da obra pura e simplesmente, consiste em transcender suas próprias condições psicossociológicas de produção e em abrir-se, assim, a uma série ilimitada de leituras, que também se encontram situadas em contextos sócio-culturais sempre diferentes. Em suma, compete à obra se descontextualizar, tanto do ponto de vista sociológico quanto do psicológico, para poder recontextualizar-se de outra forma: eis o que constitui o ato de leitura. 0 resultado é que a mediação do texto não poderá ser tratada como uma extensão da situação dialógica. De fato, no diálogo, o vis-à-vis do discurso é dado de antemão pelo próprio colóquio. Com a escrita, transcende-se o destinatário original. Para além deste, a obra cria para si uma audiência, virtualmente estendida a todo aquele que sabe ler.

Podemos ver nessa liberação a mais fundamental condição para o reconhecimento de uma instância crítica no interior da interpretação. Porque, aqui, o distanciamento pertence à própria mediação.

Essas observações, num certo sentido, não fazem senão prolongar o que o próprio Gadamer diz, de um lado, da “distância temporal” (vimos como ela é um componente da “consciência exposta à eficácia da história”) e de outro, da Schriftlichkeit, que acrescenta novos traços à Sprachlichkeit. Contudo, ao mesmo tempo que essa análise prolonga a de Gadamer, desloca sua ênfase. Porque o distanciamento revelado pela escrita já está presente no próprio discurso que mantém, em germe, o distanciamento do dito ao dizer, segundo uma análise famosa de Hegel no início da Fenomenologia do espirito: o dizer se desvanece, mas o dito permanece. A este respeito, a escrita não apresenta nenhuma revolução radical na constituição do discurso, mas realiza seu desejo mais profundo.

2 A hermenêutica deve satisfazer a uma segunda condição, se é que pretende explicar uma instância crítica a partir de suas próprias premissas. Deve superar a dicotomia danosa, herdada de Dilthey, entre “explicar” e “compreender”. Esta dicotomia, como se sabe, procede da convicção segundo a qual toda atitude explicativa é tomada de empréstimo à metodologia das ciências da natureza e indevidamente estendida às ciências do espírito. O aparecimento, no campo da teoria do texto, de modelos semiológicos, convence-nos de que nem toda explicação é naturalista ou causal. Os modelos semiológicos, aplicados especialmente à teoria do relato, são tomados de empréstimo ao domínio da linguagem, por extensão das unidades menores que a frase às unidades maiores que a frase (poemas, relatos, etc.)- A categoria sob a qual devemos situar o discurso não é mais aqui, a da escrita, porém, a da obra, vale dizer, uma categoria que depende da práxis, do trabalho. Compete ao discurso poder ser produzido à maneira de uma obra apresentando estrutura e forma. Mais ainda que a escrita, a produção do discurso como obra opera uma objetivação graças à qual ele se põe a ler em condições existenciais sempre novas.

Todavia, diferentemente do discurso simples da conversação, que entra no movimento espontâneo da questão e da resposta, o discurso enquanto obra é “tomado” em estruturas exigindo uma descrição e uma explicação que mediatizam o “compreender”. Encontramo-nos, aqui, numa situação próxima à que foi descrita por Habermas: a reconstrução é o caminho da compreensão. Contudo, essa situação não é própria à psicanálise e a tudo o que Habermas designa pelo termo de “hermenêutica das profundezas”. Esta condição é a da obra em geral.

Portanto, se há uma hermenêutica — e estou convencido do fato, contrariamente ao estruturalismo, que gostaria de limitar-se à etapa explicativa -, não se constitui no sentido oposto ao da explicação estrutural, mas através de sua mediação. Com efeito, a tarefa do compreender é a de elevar ao nível do discurso aquilo que, inicialmente, se dá como estrutura. Contudo, devemos ir tão longe quanto possível, no caminho da objetivação, até o ponto em que a análise estrutural revela a semântica profunda de um texto, antes de pretender “compreender” o texto a partir da “coisa” que dele nos fala. A coisa do texto não é aquilo que uma leitura ingênua do texto revela, mas aquilo que o agenciamento formal do texto mediatiza. Se é assim, verdade e método não constituem uma alternativa, porém, um processo dialético.

3. De uma terceira maneira, a hermenêutica dos textos se volta para a crítica das ideologias. O momento propriamente hermenêutico, parece-me, é aquele em que a interrogação, transgredindo o fechamento do texto, volta-se para aquilo que o próprio Gadamer chama de “a coisa do texto”, a saber, o tipo de mundo aberto por ele. Esse momento pode ser chamado de o momento da referência, em memória da distinção fregeana entre sentido e referência. O sentido da obra é sua organização interna, sua referência é o modo de se manifestar diante do texto.

Devo observar, de passagem, que aqui se situa a ruptura mais decisiva com a hermenêutica romântica. Não há intenção oculta a ser procurada detrás do texto, mas um mundo a ser manifestado diante dele. Ora, esse poder do texto de abrir uma dimensão de realidade comporta, em seu princípio mesmo, um recurso contra toda realidade dada e, dessa forma, a possibilidade de uma crítica do real. É no discurso poético que esse poder subversivo se revela de modo mais nítido. Toda a estratégia desse discurso se mantém no equilíbrio de dois momentos: suspensão da referência da linguagem ordinária e abertura de uma referência de segundo grau, que é outro nome para aquilo que designamos anteriormente por mundo da obra, mundo aberto pela obra. Com a poesia, a ficção é o caminho da redescrição ou, para falar com Aristóteles na Poética, a criação de um mythos, de uma “fábula”, é o caminho da mimesis, da imitação criadora.

Ainda aqui, desenvolvemos um tema esboçado pelo próprio Gadamer, especialmente em suas magníficas páginas sobre o jogo. Contudo, levando até o fim essa meditação sobre a relação entre ficção e redescrição, introduzimos um tema crítico que a hermenêutica das tradições tende a proscrever de suas fronteiras. No entanto, esse tema estava potencialmente contido na análise heideggeriana do compreender. Estamos lembrados como Heidegger liga ao compreender a noção de “projeção de meus possíveis mais próprios”. Isto significa que o modo de ser do mundo aberto pelo texto é o modo do possível, ou melhor, do poder-ser. Reside aí a força subversiva do imaginário. O paradoxo da referência poética consiste justamente no seguinte: a realidade só é redescrita na medida mesma em que o discurso se eleva ao nível da ficção.

Por conseguinte, compete a uma hermenêutica do poder-ser voltar-se para uma crítica das ideologias, de que ela constitui a mais fundamental das possibilidades. Ao mesmo tempo, o distanciamento se inscreve no cerne da referência: é do real quotidiano que o discurso poético se distancia, visando ao ser como poder-ser.

4. De uma última maneira, a hermenêutica dos textos designa o lugar vazio de uma crítica das ideologias. Esse último ponto diz respeito ao estatuto da subjetividade na interpretação. Se, com efeito, a primeira preocupação da hermenêutica não é a de descobrir uma intenção oculta por detrás do texto, mas a de manifestar um mundo diante dele, a compreensão de si autêntica é aquela que, segundo Heidegger e Gadamer, deixa-se de instruir pela coisa do texto”. A relação do texto com o mundo toma o lugar da relação do autor com a subjetividade. Ao mesmo tempo, desloca-se também o problema da subjetividade do leitor. Compreender não é projetar-se no texto, mas expor-se ao texto: é receber um “si” mais vasto da apropriação das proposições de mundo revelada pela interpretação. Em suma, é a coisa do texto que dá ao leitor sua dimensão de subjetividade. A compreensão deixa, então, de ser uma constituição de que o sujeito seria a chave. Se levarmos até o fim essa sugestão, deveremos dizer que a subjetividade do leitor não é menos colocada em suspenso, irrealizada, potencializada, que o mundo revelado pelo texto. Em outras palavras, se a ficção é uma dimensão fundamental da referência do texto, não é menos uma dimensão fundamental da subjetividade do leitor. Ao ler, eu me irrealizo. A leitura me introduz nas variações imaginativas do ego. A metamorfose do mundo segundo o jogo também é a metamorfose lúdica do ego.

Vejo, nessa ideia de “variação do ego”, a possibilidade mais fundamental para uma crítica das ilusões do sujeito. Esse elo podia ficar dissimulado, ou não desenvolvido, numa hermenêutica das tradições, correndo o risco de introduzir prematuramente um conceito de apropriação (Aneignung) cuja ponta se dirige contra o distanciamento alienante. Todavia, se o distanciamento de si mesmo não é um modo errado a se combater, mas a condição de possibilidade da compreensão de si mesmo diante do texto, a apropriação é o complemento dialético do distanciamento. Assim, a crítica das ideologias pode ser assumida num conceito de compreensão de si que implica organicamente uma crítica das ilusões do sujeito. O distanciamento de si mesmo exige que a apropriação das proposições de mundo, fornecidas pelo texto, passe pela desapropriação de si. A crítica da consciência falsa pode tornar-se, assim, parte integrante da hermenêutica e conferir à crítica das ideologias a dimensão meta-hermenêutica que Habermas lhe assinala.