- Japiassu
- Original
Japiassu
Estamos lembrados de que a hermenêutica romântica enfatizava a expressão da genialidade. Igualar-se a essa genialidade, tornar-se contemporâneo dela, era a tarefa da hermenêutica. Dilthey, próximo ainda, neste sentido, da hermenêutica romântica, fundava seu conceito de interpretação sobre o de “compreensão”, vale dizer, sobre a captação de uma vida estranha exprimindo-se através das objetivações da escrita. Donde o caráter historicizante e psicologizante da hermenêutica romântica e diltheyniana. Esta via não nos é mais acessível, a partir do momento em que levamos a sério o distanciamento, pela escrita, e a objetivação, pela estrutura da obra. Significaria isto, porém, que ao renunciar a apreender a alma de um autor, limitamo-nos a reconstituir a estrutura de uma obra?
A resposta a essa questão afasta-nos tanto do estruturalismo quanto do romantismo. A tarefa hermenêutica fundamental escapa à alternativa da genialidade ou da estrutura. Vinculo-a à noção do “mundo do texto”.
Essa noção prolonga o que acima chamamos de a referência ou denotação do discurso: em toda proposição podemos distinguir, com Frege, seu sentido e sua referência1. Seu sentido é o objeto real que visa; este sentido é puramente imanente ao discurso. Sua referência é seu valor de verdade, sua pretensão de atingir a realidade. Por esse caráter, o discurso se opõe à língua, que não possui relação com a realidade, as palavras remetendo a outras palavras na ronda infindável do dicionário. Somente o discurso, dizíamos, visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo.
A questão nova que se coloca é a seguinte: o que ocorre com a referência quando o discurso se torna texto? É aqui que a escrita, mas, sobretudo, a estrutura da obra, alteram a referência, a ponto de torná-la inteiramente problemática. No discurso oral, o problema se resolve, enfim, na função ostensiva do discurso. Em outros termos, a referência se resolve no poder de mostrar uma realidade comum aos interlocutores; ou, se não podemos mostrar a coisa de que falamos, pelo menos podemos situá-la relativamente à única rede espaço-temporal à qual também pertencem os interlocutores. Finalmente, é o “aqui” e o “agora”, determinados pela situação do discurso, que conferem a referência última a todo discurso. Com a escrita, as coisas já começam a mudar. Não há mais, com efeito, situação comum ao escritor e ao leitor. Ao mesmo tempo, as condições concretas do ato de mostrar não existem mais. Sem dúvida, é essa abolição do caráter mostrativo ou ostensivo da referência que torna possível o fenômeno que denominamos de “literatura”, onde toda referência à realidade dada pode ser abolida. Contudo, é essencialmente com o aparecimento de certos gêneros literários, geralmente ligados à escrita, mas não necessariamente tributários desta, que essa abolição da referência ao mundo dado é levada até suas mais extremas condições. Este é, me parece, o papel da maior parte de nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura de ficção — conto, mito, romance, teatro —, bem como de toda literatura denominada de poética, onde a linguagem parece glorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do discurso ordinário.
No entanto, não há discurso de tal forma fictício que não vá ao encontro da realidade, embora em outro nível, mais fundamental que aquele que atinge o discurso descritivo, constatativo, didático, que chamamos de linguagem ordinária. Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que Husserl designava pela expressão de Lebenswelt, e Heidegger pela de “ser-no-mundo”.
É essa dimensão referencial absolutamente original da obra de ficção e de poesia que, a meu ver, coloca o problema hermenêutico mais fundamental. Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do texto; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem das estruturas, o que permanece para ser interpretado? Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto.
Vamos ao encontro, aqui, de uma sugestão de Heidegger dizendo respeito à noção de Verstehen. Estamos lembrados de que, em Sein und Zeit, a teoria da “compreensão” não está mais vinculada à compreensão de outrem, mas torna-se uma estrutura do ser-no-mundo. Mais precisamente, é uma estrutura cujo exame vem após ao da Befindlichkeit; o momento do “compreender” responde dialeticamente ao ser em situação, como sendo a projeção dos possíveis mais adequados ao cerne mesmo das situações onde nos encontramos. Dessa análise, retenho a ideia de “projeção dos possíveis mais próximos” para aplicá-la à teoria do texto. De fato, o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único.
O mundo do texto de que falamos não é, pois, o da linguagem quotidiana. Neste sentido, ele constitui uma nova espécie de distanciamento que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Trata-se do distanciamento que a ficção introduz em nossa apreensão do real. Como vimos, um relato, um conto ou um poema não existem sem referente. Mas esse referente estabelece uma ruptura com o da linguagem quotidiana. Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, mas não mais sob o modo do ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser. Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real.
Conforme já mostrei em outra obra, tomando o exemplo da linguagem metafórica2, a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a tragédia, chamava de a mimesis da realidade. A tragédia, com efeito, só imita a realidade, porque a recria através de um mythos, de uma “fábula”, que atinge sua mais profunda essência.
É este o terceiro tipo de distanciamento que a experiência hermenêutica deve incorporar.
Original
- G. Frege, Écrits logiques et philosophiques, trad. fr., Paris, 1971, pp. 102s[
]
- P. Ricoeur, “La métaphore et le problème central de l’herméneutique”, Revue Philosophique de Louvain, 70, 1972, pp. 93-112[
]
- G. Frege, Écrits logiques et philosophiques, trad. fr. de C. Imbert, Paris Éd. du Seuil, 1971, cf. notamment p. 102 sq. (A la suite de É. Benveniste, P. Ricœur traduit ici Bedeutung par référence, alors que C. Imbert a choisi dénotation. Cf. introduction, p. 15). ( NdE).[
]
- « La métaphore et le problème central de l’herméneutique », Revue philosophique de Louvain, 1972, n° 70, p. 93-112 ; voir aussi La Métaphore vive, Paris, Éd. du Seuil, 1975.[
]