Richardson (2003:638-639) – Ereignis

O que devemos entender por “acontecimento apropriativo” (Ereignis) a partir do qual a diferença ontológica “emerge” (Austrag)? Já em 1944, no ensaio “Λόγος”, Heidegger sugere que há um “ponto médio” entre o Ser e o Ser-aí que, de alguma forma, dá origem a ambos. Em WD (GA8), esse “ponto médio” é mencionado como uma “terceira” coisa que, para είναι e νοεῖν, seria uma “primeira” coisa, ou seja, “anterior” a ambos. No ID (GA11), ele é entendido como uma origem que se encontra mais profundamente do que o Ser e o homem, e permite que eles pertençam um ao outro, uma Simplicidade última que é chamada de singulare tantum.1 Essa (Coisa) absolutamente Última é o que é chamado de “acontecimento apropriativo” da verdade.

Agora, se restringirmos nossa atenção a esses textos, estaremos inclinados a inferir que o autor, ao meditar sobre a diferença ontológica como tal, está tateando além dela em direção à Unidade última (ou seja, o “diferenciador”) da qual deriva a dualidade dos Seres (ou seja, o “diferenciado”). Encontramos essa mesma sondagem na unidade original quando o autor fala de Λήθη como uma riqueza inesgotável, em razão da qual o não-dito em qualquer expressão não é absolutamente nada, mas meramente um não-dito:

… O não-dito não é apenas aquilo que carece de articulação, mas (algo) não-dito, que ainda não foi mostrado, que ainda não alcançou (a condição de) luminância. O que deve permanecer não dito é retido no não dito, enquanto que na ocultação, como incapaz de ser mostrado, está o mistério. …[GA12:253]

Em outras palavras, é um “algo” que só podemos imaginar como uma Unidade original.

Até aqui, tudo bem. Mas outra série de textos nos leva a crer que o acontecimento é apenas o próprio Ser, cujo sentido sempre buscamos. Nesse caso, o Ser que “surge” do acontecimento é simplesmente o Ser, na medida em que se e-mite em qualquer momento. Por acontecimento apropriativo, então, Heidegger simplesmente significaria o Ser como tal, na medida em que é o processo pelo qual a diferença (ontológica) irrompe [GA11:63]. Considerado nesses termos, acontecimento apropriativo designa nada mais do que o processo de ά-λήθεια pelo qual o Ser se e-mite ao homem – em outras palavras, é outra fórmula para “emissão (art4327)” (Geschick), cuja única vantagem seria o fato de sugerir a diferença (ontológica) como tal. “… Aquilo que produz o acontecimento apropriativo é o próprio acontecimento, e nada mais além disso. …” [GA12:258]

Se esse é o sentido de “acontecimento apropriativo”, no entanto, em que sentido é um singulare tantum? O singulare tantum significa a emissão como tal, na medida em que perdura por toda a história do Ser? Como devemos entender o texto a seguir:

… Talvez, de fato, por meio dessa análise da diferença entre Ser e entes, algo duradouro apareça… que passa pela emissão do Ser desde o início até sua consumação. Mas continua difícil dizer como essa perduração deve ser pensada, quando ela não é nem uma generalidade válida para todos os casos, nem uma lei que a necessidade de um processo no sentido de uma dialética certifica.[GA11:65-66]

Mas não devemos ao menos tentar pensá-la? E a disjunção entre “generalidade abstrata” e “necessidade dialética” esgota todas as explicações possíveis? Se toda emissão é a identidade (correlação) do Ser e do pensamento, não é possível que haja uma identidade dessas identidades que forneça uma unidade à história? Se não, então que sentido faz falar de uma “consumação” do Ser-como-história? Em caso afirmativo, qual é a natureza dessa unidade?

  1. GA7:VA, p. 225 (Mitte); GA8:WD, p. 147 (ein drittes); GA11:ID, pp. 31 (Zusammengehören-lassen), 29 (Einfache, singulare tantum).[]