O Aí-ser é a passagem da transcendência finita, que, nas circunstâncias cotidianas, é primeiramente discernível como um ente cuja natureza é ser-no-mundo. Ao analisá-lo, seguimos a ordem do autor, primeiro tentando desvincular o sentido do mundo para o qual o Aí-ser transcende e, em seguida, o sentido do que significa ser “em” tal mundo. Não podemos começar, entretanto, sem antecipar a segunda parte da análise. Quando dizemos que o Aí-ser é “no” Mundo, “no” aqui não tem de forma alguma um sentido puramente espacial, por exemplo, como a água está “em” um copo, mas sim o sentido de estar “em casa” ou “permanecer” nele, de ser confiado com uma “familiaridade” privilegiada com o Mundo ao redor. Novamente, é estar imerso de alguma forma no mundo (Sein bei) no qual o Aí-ser entrou e com o qual tem relações. Essa imersão no Mundo é obviamente mais do que a mera justaposição do Aí-ser e do Mundo, como se fossem duas entidades colocadas lado a lado, mas mutuamente inacessíveis. É uma profunda intimidade do Aí-ser com o Mundo, em razão da qual outros entes que estão dentro do Mundo podem ser “encontrados”, ou seja, revelam-se pelo que são quando entram em contato com o Aí-ser. (SZ:54-55) Esse contato, no entanto, não é da ordem do “conhecimento” no sentido usual do termo, mas da natureza de um ter-que-fazer com essas coisas e de um lidar com elas que é encontrado simplesmente no intercurso diário. Nesse sentido, a familiaridade com os entes não é nada “teórica”, se isso for entendido como mera contemplação, mas um trato completamente concreto com eles. (SZ:67,69)
O autor enumera quatro sentidos nos quais o termo “Mundo” pode ser tomado: 1. como a totalidade dos entes que são encontrados pelo Aí-ser dentro do Mundo; 2. como o Ser dessa totalidade de entes que não o Aí-ser; 3. como um complexo que não se opõe ao Aí-ser, em que o próprio Aí-ser “vive”; 4. como o Ser (‘Weltlichkeit) desse “em que”. É o terceiro desses sentidos que Heidegger pretende quando fala do Mundo no qual o Aí-ser é e que ele buscará analisar. Entender Mundo dessa maneira é tomá-lo em um sentido ôntico, ou seja, como o Onde de um engajamento ôntico com entes que torna esse engajamento possível. Pela mesma razão, Mundo tem um significado existencial. Esse sentido é pré-ontológico, ou seja, (aqui) pré-temático, portanto, anterior a qualquer distinção reflexiva entre ôntico e ontológico, portanto, no estágio inicial do cotidiano. É a situação de fato do Mundo do Aí-ser, ou seja, de sua “facticidade”. A tarefa desta parte da análise é tornar esse mundo temático e discernir o que constitui o mundo como mundo. (SZ:64-65)
(RICHARDSON, William J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003)