Vimos que a tarefa da ontologia fundamental é discernir o Ser do Aí-ser. Dado o fato de que o Ser é aquilo por meio do qual os entes (Aí-ser (There-being)) se manifestam enquanto o que são e como são, então, de que outra forma a ontologia fundamental discernirá o Ser do Aí-ser a não ser permitindo que ele se manifeste pelo que é?
Essa, diz Heidegger, é a tarefa genuína da fenomenologia: λέγειν τά φαινόμενα, onde λέγειν tem o sentido de δηλοῦν (“tornar claro”), ou mais precisamente άποφαίνεσθαι (sc. “permitir que algo apareça por si mesmo, fazer-se ver”), e φαινόμενα significa ‘aquilo que se mostra como é’. Portanto, fenomenologia significa άποφαίνεσθαι τά φαινόμενα, sc. “permitir que aquilo que por si mesmo se manifesta se revele como é.” (SZ:28-34; ET7 )
Mas o que exatamente é dentro de um ente que “por si mesmo se manifesta” que a fenomenologia permite que seja revelado?
… Obviamente, aquilo que antes de tudo e na maior parte das vezes não se mostra, aquilo que, ao lado do que antes de tudo e na maior parte das vezes se mostra, está oculto, mas, ao mesmo tempo, é algo que pertence essencialmente àquilo que antes de tudo e na maior parte das vezes se mostra, de tal forma, de fato, que constitui seu sentido e fundamento. (SZ:35)
Em outras palavras, a fenomenologia deixa ver o Ser dos entes. Agora, deixar-ser-visto, ou seja, investigar tematicamente, o Ser dos entes é a função clássica da ontologia. Fica claro, então, por que Heidegger afirma que “… a ontologia só é possível como fenomenologia. …” e, reciprocamente, que a fenomenologia é efetivamente ontologia. (SZ:35)
No presente caso, o fenômeno com o qual estamos preocupados é o próprio Ser. A tarefa é deixar ser visto o Ser do Aí-ser — o Ser que está oculto, ou que já foi revelado e caiu no esquecimento, ou que é revelado, mas de forma distorcida, de modo que o Aí-ser parece ser o que não é — em resumo, o Ser que, de uma forma ou de outra, é negado. E é precisamente pelo fato de o Ser, por ser negado, não ser visto que a fenomenologia é tão necessária. (SZ:35-36)
Para permitir que o Aí-ser, então, revele por si mesmo o que é e como é (como compreensão ontológica, existência, transcendência finita), Heidegger o submeterá a uma análise fenomenológica e, assim, exporá o Ser do Aí-ser (Auslegung) em plena vista. Essa “apresentação”, ou seja, a interpretação do Aí-ser, Heidegger também chama de “hermenêutica”, mas a importância total desse fato não aparecerá por algum tempo. (SZ:37-38) Por enquanto, vamos nos contentar em observar que o Aí-ser é, no sentido mais estrito, uma auto-interpretação, ou seja, algo que o Aí-ser deve alcançar em, para e como seu próprio ser.
Seria difícil exagerar a importância da concepção de fenomenologia de Heidegger para a evolução do pensamento fundamental. É claro que não se trata simplesmente de um método escolhido arbitrariamente entre outros igualmente possíveis. Ela é imposta por sua concepção do próprio processo do Ser como aquilo que torna os entes manifestos de uma forma negativa. Se a fenomenologia é o método escolhido para a meditação sobre o Aí-ser, que deve preparar um caminho para interrogar o sentido do próprio Ser, isso significa que é o modo como o Heidegger de 1927 pensa sobre o Ser.
(RICHARDSON, William J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003)