Dado o fato de que devemos fazer uma análise fenomenológica do Aí-ser (There-bieng, Dasein) no homem, sob quais circunstâncias começaremos? Lembre-se dos termos do problema: o Aí-ser é uma compreensão intrinsecamente finita do Ser. Uma das consequências dessa finitude é o fato de que o Aí-ser toma sua prerrogativa tão completamente como garantida que se esquece que é uma prerrogativa e, portanto, esquece-se de si mesmo. Que a análise da transcendência finita comece, então, com o Aí-ser na condição em que ele é a maior vítima de sua finitude: jogado entre os entes e imerso neles, a prerrogativa única do Aí-ser perdida no esquecimento. Essa é a sua condição cotidiana. Que ela seja chamada de “cotidianidade” (Alltäglichkeit).
Com a cotidianidade, Heidegger deseja designar aquela condição na qual o Aí-ser se encontra em primeiro lugar e, em sua maior parte, em seu contato diário com os entes. “Antes de tudo” indica a maneira pela qual o Aí-ser é inicialmente revelado a si mesmo em razão de sua coexistência com os outros, nas idas e vindas, nas constantes trocas superficiais que constituem a relação cotidiana. “Em sua maior parte” indica a maneira pela qual o Aí-ser geralmente, embora nem sempre, se mostra para cada homem. É o ordinário consumado.1
Nessa ordinariedade, a grande prerrogativa do Ser está esquecida. A análise fenomenológica da cotidianidade não está preocupada, é claro, em descrever como um homem manuseia sua faca e seu garfo, mas como, por trás de todo o comércio entre o Aí-ser e outros entes, está a realização da transcendência. Que essa transcendência seja designada por um termo mais congruente com o contexto da cotidianidade: que seja chamada de “ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein).2 O termo não muda sua natureza: continua sendo o vir-a-ser da compreensão do Ser, ou seja, a existência, pela qual o Aí-ser é o que é. Daí em diante, Aí-ser, transcendência (finita) e ser-no-mundo são sinônimos. Mas no múltiplo envolvimento do cotidiano, essa transcendência é obscurecida. Esse é o esquecimento que se segue à finitude.
Finitude! A propensão ao esquecimento, portanto, é tão inevitável e permanente quanto o próprio cotidiano. Ela não pode ser dissolvida. Só pode ser superada. A tarefa da ontologia fundamental é superá-la, arrancar o Ser do esquecimento de seu si autêntico. Por isso, o principal ato da ontologia fundamental é a “re-colha (re-collection)” (Wieder-erinnerung) que, para ser genuína, deve “colher” dentro de si mesma novamente (“re-”) nas fontes mais internas de sua possibilidade aquilo que é recolhido.3 No presente caso, isso significa que toda a análise será controlada por seu propósito ontológico fundamental: discernir na cotidianidade a estrutura ontológica da transcendência finita, cujo sentido último é o tempo.
[RICHARDSON, William J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003]- SZ, pp. 370 (Alltäglichkeit), 43 (Durchschnittlichkeit).[↩]
- GA3:KM, p. 212. This explains why the author, after an introduction that thematized There-being as Being-comprehension and existence, takes it to be self-evident that There-being’s nature is to-be-in-the-World. See SZ, pp. 52 ff.[↩]
- GA3:KM, p. 211. It is impossible to retain author’s play on words: Wieder-erinnerung, Erinnerung, Erinnerte, verinnerlichen. We have tried to be faithful to the sense by playing with “recollect.” This anticipates the notion of Andenken.[↩]