Richardson (2003:434-437) – emissão [Geschick]

Lembramos a conclusão que já vimos: O niilismo de Nietzsche é o niilismo da própria metafísica, na medida em que ela se esqueceu do Ser. Heidegger está tentando superar ambos ao pensar a essência da qual brotam, ou seja, o Ser como verdade negada. O que nos é dito aqui sobre o Ser (ainda mais sobre o pensamento) é dito apenas indiretamente, mas não é menos significativo por isso.

Ao argumentar que o subjetivismo é correlativo com a verdade como certeza, Heidegger insiste que a verdade como não ocultação e o processo do Ser são um só. Mas nós já sabemos disso. O que há de novo no ensaio é uma precisão importante com relação à primazia do Ser. Pela primeira vez, a palavra Geschick é usada significativamente com o sentido que terá no restante de Heidegger II. Em SZ, traduzimos essa palavra como “destino comum”, mas agora devemos nos resignar a um neologismo, se quisermos fazer justiça ao autor, e chamá-la de “emissão (mittence)”.1 Entendemos, assim, aquele evento no qual o Ser é revelado, quando esse evento é concebido como proveniente da iniciativa do Ser 2. Podemos acrescentar que a palavra “acontecimento apropriativo” (Ereignis) também será usada agora no mesmo contexto e, daqui em diante, se tornará cada vez mais significativa no pensamento do autor. 3

O que é importante no ensaio é o fato de que agora a metafísica e o niilismo são concebidos como provenientes exatamente desse acontecimento. Pois o Ser se outorga de tal forma que simultaneamente se retira, ou seja, a emissão é negada porque o Ser não pode se outorgar a não ser de forma finita. Se pensarmos o problema em termos de Ser-como-emissão, “… seria devido à essência do próprio Ser que ele permanece impensado, (simplesmente) porque ele se retira. O próprio Ser se retira para sua própria verdade. …” 3 Entendemos que “em sua própria verdade” aqui significa que, ao se revelar nos entes como sua verdade, o Ser se retira por trás da finitude dessa revelação. O autor continua: “… ele se esconde nessa (revelação) e se oculta (como) assim se escondendo.” 3 Essa ocultação pelo Ser de sua própria ocultação é o que já vimos ser o “mistério” do Ser “… de acordo com o qual a verdade do Ser vem à presença”. 3

Nesses termos, a metafísica, como o esquecimento do Ser, é o esquecimento ou, se preferirmos, o desconhecimento do mistério. Esse fenômeno foi chamado de “errância”. A metafísica não é marcada simplesmente pelo fracasso da parte do homem em colocar a questão do Ser, nem pode ser chamada de “erro” humano em qualquer sentido próprio. Fundamentalmente, ela é uma emissão do Ser, de modo que “… a metafísica em sua essência é o mistério não pensado, porque ainda retido, do próprio Ser. …” 3 Se essa é a essência da metafísica (e também a essência do niilismo), fica claro por que nenhuma delas pode ser pensada em sua essência até que tenhamos pensado o mistério do próprio Ser, ou seja, o Ser em sua negatividade.

Mas qual é exatamente a natureza da emissão — qualquer emissão do Ser? Mais explicitamente do que até agora, Heidegger agora indica que é qualquer maneira especial na qual a diferença ontológica se manifesta (Austrag). Pois, como resultado da emissão, o homem se comporta de qualquer maneira com os entes simplesmente por causa de sua relação com o próprio Ser. 4 Portanto, o comportamento é fundamentado na diferença entre Ser e entes, ou seja, na diferença ontológica.5 Por exemplo, a própria metafísica surge do fato de que o Ser se apresenta ao homem de tal forma que o homem tenta compreender os entes como entes. É por isso que toda a história da metafísica para Heidegger é um evento no qual essa diferença surgiu.6

Mas a diferenciação não é o resultado de algum “ato” extrínseco que, por assim dizer, divide o Ser dos entes. Ao invés, “… em suas origens, a diferenciação é o processo de presença do próprio Ser, cujo poder originário consiste no fato (simplesmente) de que o evento ocorre. …” 7 É por isso que, no final das contas, “Ser como história não é nem a história dos homens e da humanidade, nem a história do relacionamento do homem com os entes e o Ser. O Ser-como-história é o próprio Ser e nada mais. …” 5 Todos esses temas serão totalmente orquestrados à medida que Heidegger II se desenvolve.

  1. Along with the German words for “sending” (schicken), for “history” (Geschichte) and for “fortune” (Schicksal), the word Geschick derives from the verb “to-come-to-pass” (Geschehen). For Heidegger it designates an event (Ereignis), hence a coming-to-pass, by which Being “sends” (sich schickt) itself unto man. We call the sending an “e-mitting.” Considered as proceeding from Being, the sending is a “mittence.” Considered as coming-to-pass in man, it is a “com-mitting,” or “commitment” (Schicksal). Henceforth, the latter replaces the SZ translation as “fortune.” The collectivity of mittences constitutes Being-as-history (Ge-schick-e, Geschichte), and we translate as “inter-mittence.” All this becomes clearer in the meditation on Hölderlin’s “Re-collection.”[]
  2. GA5:HW:243-245[]
  3. GA5:HW:244[][][][][]
  4. GA6T2:206[]
  5. GA6T2:207[][]
  6. GA6T2:208-209[]
  7. GA6T2:489[]