… Se, no entanto, devemos pressupor que o Ser-aí é dotado de uma compreensão do Ser, não devemos também admitir como pressuposto o que é compreendido? Certamente parece que sim, mas o autor é menos explícito aqui. Heidegger pressupõe uma concepção de Ser que nem todos acharão tão evidente quanto ele. Como devemos entendê-la? Se o Ser é aquilo “que determina um ente como um ente”, ou seja, aquilo pelo qual um ente é o que é, qual é a característica mais fundamental dos entes? [SZ:6] O fato de que eles são revelados (offenbar) ao Ser-aí como sendo o que são. Ser, então, é aquilo pelo qual os entes são revelados ao Ser-aí.
… Por mais impenetrável que seja a obscuridade que envolve o ‘Ser’ e seu significado, tão certo permanece (o fato) de que em todo o domínio da manifestação dos entes nós continuamente compreendemos algo como o Ser. …1
Além disso, essa revelação dos entes é, de alguma forma, correlativa à existência do Aí-ser (There-being, Dasein), ou seja, sua pré-compreensão do Ser: “Com a existência… ocorre uma irrupção na totalidade dos entes de tal natureza que agora, pela primeira vez, os entes… em si mesmos, ou seja, como entes, tornam-se manifestos. …” 2 O Ser, portanto, é aquilo em razão do qual os entes se manifestam — não por si mesmos, mas para e pelo Aí-ser.
A questão é capital. O ser, para Heidegger, é sempre correlativo com o Aí-ser, aquele em razão do qual os entes são acessíveis ao homem. Além disso, a partir desse ponto de vista, fica fácil entender por que ele pode dizer: “acima de tudo, somente enquanto o Aí-ser for, ou seja, a potencialidade ôntica da compreensão do Ser, ‘existe’ o Ser. … “ [SZ:212] Além disso, se o Ser é entendido como aquilo em razão do qual os entes são manifestos e a verdade é essencialmente o processo de não ocultação, então “‘há’ Ser — não entes — somente na medida em que verdade é. Ser e verdade ‘são’ simultâneos. …” [SZ:230] Tudo isso, dizemos, baseia-se em uma suposição. Não é nossa tarefa questionar essa concepção no momento — no sentido mais estrito, um preconceito — nem mesmo perguntar se ela é a única concepção de Ser que é legítima para o homem finito. Queremos apenas chamar a atenção para o fato de que se trata de um preconceito, mesmo se, para alguém cuja abordagem é fenomenológica, seja inevitável.3 [RICHARDSON, William J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003]
- GA03:KM, pp. 204-205[↩]
- GA3:KM, pp. 206[↩]
- “… Le principe primordial de la Philosophie de Husserl — encore qu’il soit plus souvent implicitement supposé qu’explicitement exprimé — c’est celui qu’être c’est avoir un sens; l’être vrai est ‘l’être pour’ un sujet….” (Quentin Lauer, Phénoménologie de Husserl [Paris: Presses Universitaires de France, 1955], p. 4). Though There-being is not a “subject” in the Husserlean sense but transcendence, the similarity of attitude between Husserl and Heidegger on this point is beyond question.[↩]