Relâmpago – Fogo – Sol

(Beaini1989:11-13)

Heráclito de Éfeso, no fragmento 41, escreve:

“Só uma coisa é sabia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo”.1

Este pensamento é o Logos dirigente, princípio de inteligibilidade do Cosmos que, enquanto reino de pertença e participação do todo em tudo, identifica-se com o “relâmpago”, o “fogo” e o “Sol”2 — enquanto neles se desdobra.

O brilho do relâmpago, do fogo e do Sol — luzes de um acender que impera na Noite e no Dia — abrem o espaço no qual deixam luzir a fulguração dos entes, que surgem no seio da presença, delimitando-se. Tais como as formas saídas da indeterminabilidade do Caos, as realidades em sua gênese seminal re-surgem originariamente em seu Ser que é devir. O clarear-se des-venda o tempo propício, o impulso inerente ao movimento circular no qual os contrários, continuamente em combate, se dirigem ao âmbito da manifestabilidade. Totalidade e individualidades se mesclam no jogo cósmico, governados em sua especificidade pelo Logos do outorgar-se no subtrair-se.

“Assim como o relâmpago resplandece durante segundos e na claridade de seu resplandecer mostra as coisas individuadas em seu contorno, assim também o relâmpago tira à luz, em um sentido profundo, as muitas coisas em sua união articulada”.3

O governar, segundo a ordem natural, é circunscrito no ato repentino do inesperado relâmpago clareador da Noite, como também na lentidão de um fogo divino-celeste, solar ou humano. A conquista da espiritualidade do fogo assinala o início de uma civilização, sedimentada talvez pelo titã Prometeu, que não permite que os homens permaneçam apenas no âmbito noturno das formas dispersas e confundíveis, ao fornecer-lhes a dádiva de luz e calor: penetração e abrigo no que transparece. O fogo, transcendendo o âmbito espacial do estar-no-Mundo de uma comunidade, vem a ser archote — fresta que adentra a escuridão de uma caverna, para retribuir aos deuses a proximidade, instância no duradouro. O fogo, da cocção neolítica da argila esculpida às luminárias, eleva-se intenso, crepitando na altitude do Céu, reaproximando-se de sua nascente sonora. O Homem sobressai, a partir de então, sobre os demais entes, acendendo e ascendendo rumo a um plano de referência situado no cume do alvorecer. Tem como seu horizonte o fogo celeste, simbolizado pelo Sol.

“O Sol não ultrapassará os seus limites; se isto acontecer, as Erínias, auxiliares da Justiça, saberão descobri-lo”.4

As Erínias, divindades protetoras da ordem, zelam, com a Justiça, pelo equilíbrio e pela medida de um Sol que, nascendo, atinge sua plenitude, decrescendo ao entardecer, sem que com isto se desvie do curso de seu movimento, ou seja tragado pelo campo noturno do que se escurece. No curso do devir, o Sol, conservando o que lhe é próprio, mantém sua identidade que outorga o Tempo à Terra e ao que dela frutifica. Logos e Justiça mantêm o âmbito do que impera sendo Dia e Noite, abertura ou fechamento, presença-na-ausência.

A luz celeste do Sol tem como fronteira a Terra — princípio de configuração das formas —, a solidez do que se furta à apreensão, o velamento, a densidade, como também a Água — o pré-formal por excelência —, que permite apenas a projeção do que brilha, impondo resistência à sua penetração naquilo que lhe é mais último. O alcance do Sol abundante esbarra nos limites do que a ele se furta, no bojo do mistério do inatingível. Este se desdobra como a Noite na qual estrelas e Lua são clarões que iluminam o espaço no qual cintilam.

  1. HERÁCLITO, fragmento 41. In: Os filósofos pré-socráticos. Trad. Gerd A. Bornheim. São Paulo, Cultrix, s/d, p. 38.[↩]
  2. Cf. Id. Ibid., fragmentos 6, 30 e 64, p. 36, 38 e 40.[↩]
  3. HEIDEGGER, Martin e FINK, Eugen. Heráclito (Heraklit). Trad. Jacobo Munez e Salvador Mas. Barcelona, Ariel, 1986, p. 10.[↩]
  4. HERÁCLITO, fragmento 94. In: Os filósofos pré-socráticos, p. 41.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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