Assim sendo, o conceito de possibilidade e as demais noções modais apontam para a estruturação interna das condições do aparecer de algo como fenômeno. Em Ser e Tempo, Heidegger examinou três sentidos de ser, cuja compreensão torna possível que algo se apresente como algo determinado nos diferentes comportamentos humanos: subsistência (Vorhandenheit), disponibilidade (Zuhandenheit) e existência (Existenz). Além desses, é reconhecido o sentido de ser da vida (Leben), apesar não ter sido elucidado em Ser e Tempo, e também é mencionado o sentido de ser relativo aos objetos abstratos da Matemática, a consistência (Bestand).1 (45)
Apesar de ser uma categoria modal da subsistência, é admissível que a noção de possibilidade possa ser estendida para os demais sentidos de ser. Assim, poder-se-ia identificar a possibilidade como estruturante formal da disponibilidade, da existência (o conceito existencial de possibilidade), da vida e da consistência, discriminando um complexo conceitual diferenciado. Em princípio, não haveria uma objeção para incluir, nesse complexo, as demais noções modais, que formariam um campo a ser elucidado numa investigação fenomenológica. Na medida em que Heidegger concebe os sentidos de ser como irredutíveis, discutindo criticamente o problemático primado que teria sido concedido para o sentido da subsistência, então essa mesma autonomia precisaria ser vista em relação ao conceito de possibilidade, interditando, assim, uma abordagem de fundação intermodal.
Evidentemente, considerando a ligação especial entre a ontologia fundamental e a analítica existencial, a correspondente estruturação deve ser buscada no plano modal. Esse é um problema que será abordado adiante, mas por ora é suficiente destacar que a noção de possibilidade elucidada numa abordagem fenomenológica está referida à estruturação dos diferentes sentidos de ser que tornam possível o aparecer de algo como algo determinado. Neste sentido, pode-se falar de uma concepção transcendental de possibilidade em duas acepções: ao projetar-se compreensivamente para os sentidos de ser, os seres humanos transcendem em direção a um campo do possível, e desde tal contexto é que acontece a experiência ou encontro significativo com algo. Essa noção transcendental de possibilidade está relacionada com o uso verbal dos termos que expressam a modalidade do possível, e que insere o tratamento esboçado por Heidegger na tradição da filosofia transcendental de Kant e de Husserl.2 Com isso também se entende com mais precisão porque o conceito existencial de possibilidade não pode ser qualificado como uma modalidade de re.
- Trata-se apenas de uma menção, mas, em um escrito posterior, Heidegger (GA24, pp. 13-14), afirma explicitamente, que não seriam possíveis comportamentos para com entes matemáticos caso não houvera uma compreensão da Bestand e Beständigkeit. Esse é um tema que já tem recebido atenção na literatura: ver Roubach (2008) e Reis (2002).[↩]
- Ver Kearney, Haaparanta (1988), Mohanty (1999b), Aguirre, Sherover.[↩]