Reconquistar o cogito

P. Ricœur, Philosophie de la volonté, Aubier, 1950, pp. 12-15.

1. Esta reconquista pode muito bem basear-se no Cogito de Descartes, mas Descartes agrava a dificuldade ao relacionar a alma e o corpo com duas linhas de inteligibilidade heterogéneas, ao remeter a alma para a reflexão e o corpo para a geometria: institui assim um dualismo do entendimento que nos condena a pensar o homem como um ser partido. No entanto, adverte-nos que “as coisas que pertencem à união da alma e do corpo… são conhecidas muito claramente pelos sentidos” (Carta à princesa Elisabeth, 28 de junho de 1643).

A reconquista do Cogito deve ser total; é no interior do próprio Cogito que devemos redescobrir o corpo… A experiência integral do Cogito envolve o eu desejo, eu posso, eu vivo e, em geral, a existência como corpo. Uma subjetividade comum está na base da homogeneidade das estruturas voluntárias e involuntárias. O nexo entre o voluntário e o involuntário não está na fronteira de dois universos de discurso, um dos quais seria a reflexão sobre o pensamento e o outro, a fisicalidade do corpo: a intuição do Cogito… é o sentido do corpo como fonte de motivos, como um feixe de poderes, e mesmo como uma natureza necessária. A tarefa será descobrir até a necessidade na primeira pessoa, a natureza que eu sou.


Ao tornar-se um fato, a experiência da consciência é degradada e perde os seus traços distintivos: a intencionalidade e a referência a um eu que vive nessa experiência. Na verdade, a noção de fato psíquico é um monstro: se reclama o título de fato, é por contaminação do corpo-objeto, o único que tem o privilégio de se exibir entre os objectos. Mas se ela quer ser psíquica, é por reminiscência da experiência vivida e, de certa forma, pela franja de subjetividade que ela contrabandeia para o terreno dos fatos empíricos onde o psicólogo pretende transplantá-la.

… O que se entende por corpo-sujeito e Cogito em geral? A oposição do corpo-sujeito e do corpo-objeto não coincide de modo algum com a oposição de duas direcções do olhar. É, de uma forma mais complexa, a oposição de duas atitudes, ambas podendo recorrer à intro-especção ou à extro-especção, mas em mentalidades diferentes.

O que caracteriza a psicologia empirista não é em primeiro lugar a sua preferência pelo conhecimento externo, mas a sua redução dos actos (com a sua intencionalidade e a sua referência a um Ego) a fatos. Dir-se-á que os actos são mais bem conhecidos a partir do interior e os fatos a partir do exterior? Isto é apenas parcialmente verdadeiro. Pois a própria introspecção pode ser degradada em conhecimento de fato, se lhe faltar o psíquico como ato intencional e ato de alguém… Por outro lado, o conhecimento da subjetividade não pode ser reduzido à introspecção, tal como a psicologia empírica não pode ser reduzida à psicologia comportamental. A sua essência é respeitar a originalidade do Cogito enquanto feixe de actos intencionais de um sujeito. Mas esse sujeito sou eu e tu.

… Descubro o corpo na segunda pessoa, o corpo como motivo, órgão e natureza de outra pessoa (…) O corpo-objeto é o corpo do outro e o meu próprio corpo, arrancados ao sujeito que afetam e exprimem. Só podemos passar do corpo-objeto ao corpo-sujeito por um salto que transcende a ordem das coisas, enquanto que passamos do segundo ao primeiro pelo… tipo de interesse representado pela constituição da ciência empírica como conhecimento dos fatos.

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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