A interpretação [Interpretation] do compreender [Verstehen] mostrou, ao mesmo tempo, que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela já se colocou na compreensão de “mundo”, segundo o modo de ser da decadência [Verfallen]. Mesmo onde não se trata somente de uma experiência ôntica [ontisch] e sim de uma compreensão ontológica [ontologisch], a interpretação de ser [Seinsauslegung] orienta-se, de início, pelo ser dos entes intramundanos [innerweltlichen Seienden] [NH: aqui deve-se separar: physis, idea, ousia, substantia, res, objetividade [Objektivität], ser simplesmente dado [Vorhandenheit]]. Com isso, salta-se por cima do ser do que, imediatamente, está à mão, concebendo-se primordialmente o ente como um conjunto de coisas simplesmente dadas (res). O ser recebe o sentido de realidade [Realität] [NH: “realidade” como “atividade” e realitas como “coisidade”; posição intermediária do conceito kantiano de “realidade objetiva”]. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. De acordo com este deslocamento da compreensão de ser, a compreensão ontológica da presença [Dasein] volta-se para o horizonte desse conceito de ser. A presença [Dasein], assim como qualquer outro ente, é um real simplesmente dado. Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em consequência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica. Tal primazia obstrui o caminho para uma analítica da presença [Dasein] genuinamente existencial, turvando inclusive a visualização do ser dos entes intramundanos imediatamente à mão e forçando, por fim, a problemática de ser a tomar uma direção desviante. Os demais modos de ser determinam-se então de maneira negativa e privativa com referência à realidade. STMSCC: §43
É por isso que não apenas a analítica da presença [Dasein], mas também , a elaboração da questão sobre o sentido de ser devem desvencilhar-se [269] da orientação unilateral pelo ser tomado como realidade. Necessita-se, para tanto, comprovar: que realidade não é apenas um modo de ser entre outros, mas que, ontologicamente, acha-se num determinado nexo de fundamentação com presença [Dasein], mundo e manualidade. Essa comprovação requer uma discussão de princípio do problema da realidade em suas condições e limites. STMSCC: §43
Sob o título problema da realidade, entrelaçam-se diferentes questões: 1. se é (real) o ente supostamente “transcendente à consciência” (Bewusstsein); 2. se essa realidade do “mundo externo” pode ser provada de modo suficiente; 3. e, caso esse ente seja real, até que ponto pode ser conhecido em seu ser-em-si?; 4. qual o sentido desse ente, realidade? Com referência à questão ontológico-fundamental, a discussão que vai se seguir do problema da realidade tratará de três pontos: a) realidade como problema do ser e da possibilidade de comprovação do “mundo externo”; b) realidade como problema ontológico; c) realidade e cura. STMSCC: §43
Na sequência das questões enumeradas, a primeira, isto é, o que significa realidade, é questão ontológica. Inexistindo, porém, uma problemática e uma metodologia ontológica pura, esta questão, ao ser colocada expressamente, teve de se atrelar à discussão do problema do “mundo externo”. Pois somente com base num acesso adequado ao real é que se faz possível uma análise da realidade. Desde sempre o conhecimento intuitivo foi considerado como o modo válido de apreensão do real. Ele “se dá” como atitude da alma, da consciência (Bewusstsein). Como o caráter de em-si e de independência pertencem à realidade, mescla-se à questão sobre o sentido da realidade a questão sobre a possível independência do real “com relação à consciência” (Bewusstsein), ou seja, a questão sobre a possível transcendência da consciência (Bewusstsein) para a esfera do real. A possibilidade de uma análise ontológica suficiente da realidade dependerá do alcance em que se esclarecerá em seu próprio ser aquilo de que se deve tornar independente e aquilo que deve ser transcendido. Só assim é que se poderá apreender ontologicamente o modo de ser da transcendência. E, por fim, deve-se [270] assegurar o modo primário de acesso ao real, decidindo-se se o conhecimento poderá ou não assumir essa função. STMSCC: §43
Essas investigações, que precedem uma possível questão ontológica sobre a realidade, já foram desenvolvidas na analítica existencial precedente. Nela, o conhecimento mostrou o modo derivado de acesso ao real. Em sua essência, o real só se torna acessível como ente intramundano. Todo acesso aos entes intramundanos funda-se, ontologicamente, na constituição fundamental da presença [Dasein], ou seja, no ser-no-mundo. Este, por sua vez, encontra a sua constituição de ser mais originária na cura (anteceder-a-si-mesma-no-ja-ser-em-um-mundo-como-ser-junto-a- entes-intramundanos). STMSCC: §43
A questão se o mundo é real e se o seu ser pode ser provado, questão que a presença [Dasein] enquanto ser-no-mundo haveria de levantar – e quem mais poderia fazê-lo? – mostra-se, pois, destituída de sentido. Trata-se ademais de uma questão ambígua. Confunde-se e não se chega a distinguir mundo enquanto o contexto do ser-em e “mundo” enquanto ente intramundano em que se empenham as ocupações. No entanto, com o ser da presença [Dasein], o mundo já se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, já se descobriu o “mundo”. Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de ser simplesmente dado, pode ficar encoberto. Entretanto, somente com base num mundo já aberto é que o real pode vir a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da “realidade” do “mundo externo” sem se esclarecer previamente o fenômeno do mundo. De fato, o “problema do mundo externo” orienta-se, constantemente, pelos entes intramundanos (coisas e objetos) e, desse modo, todas as discussões conduzem a uma problemática que, do ponto de vista ontológico, é quase indeslindável. STMSCC: §43
Partindo da impossibilidade de se provar o ser simplesmente dado das coisas fora de nós, a distorção do problema não seria superada em se concluindo que elas “só podem ser admitidas pela fé”. Permaneceria o preconceito de que, no fundo e idealmente, pode-se fornecer uma prova. A “fé na realidade do mundo exterior” afirma igualmente o princípio inadequado do problema ao reconhecer explicitamente o próprio “direito” dessa fé. Pois, assim, admite-se em princípio a exigência de uma prova, mesmo que se busquem caminhos diversos de uma prova constringente. STMSCC: §43
Conquanto se pretendesse sustentar que o sujeito já sempre deve pressupor, inconscientemente, que o “mundo externo” é algo simplesmente dado, o ponto de partida construtivo de um sujeito isolado ainda estaria em jogo. O fenômeno do ser-no-mundo permaneceria tão desapercebido como na comprovação de um ser simplesmente [274] dado em conjunto do físico e do psíquico. Nessas pressuposições, a presença [Dasein] chega sempre “muito tarde” porque, do momento em que realiza em seu ser essa pressuposição – e de outro modo essa pressuposição não seria possível – a presença [Dasein] como ente sempre é e está em um mundo. “Antes” de toda pressuposição e atitude caracterizadas pela presença [Dasein], o “a priori” da constituição do ser se oferece no modo de ser da cura. Fé na realidade do “mundo exterior”, legítima ou ilegítima, provar essa realidade, seja de modo suficiente ou insuficiente, pressupor essa realidade, implícita ou explicitamente, todas estas tentativas, não possuindo transparência a respeito de seu solo, pressupõe, de início, um sujeito desmundanizado ou inseguro acerca de seu mundo que, antes de tudo, precisa assegurar-se de um mundo. Nesses casos, o ser-no-mundo é, desde o início, colocado diante de um apreender, de um presumir, de um assegurar-se e crer, de uma atitude que, em si mesma, já é um modo derivado de ser-no-mundo. STMSCC: §43
O “problema da realidade”, no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente, que nesse problema é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar que e como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presença [Dasein], enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. A razão disso reside na decadência da presença [Dasein] e no deslocamento aí motivado da compreensão primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientação ontológica, o modo de colocar a questão for “crítico”, encontra então um mero “interior” enquanto o único ser simplesmente dado certo e seguro. Após a desagregação do fenômeno originário do ser-no-mundo, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um “mundo”. STMSCC: §43
Na investigação precedente, não se pode discutir amplamente a variedade de tentativas de solucionar o “problema da realidade”, formada pelas diferentes espécies de realismo e idealismo e de suas [275] mediações. Por mais que, em todas essas espécies, se possa encontrar um germe de questionamento autêntico, seria absurdo pretender solucionar o problema somando tudo o que é correto em cada um. Ao contrário, é preciso que se compreenda fundamentalmente que as diversas direções epistemológicas não são deficientes quanto à epistemologia, mas que, devido ao descaso da analítica existencial da presença [Dasein], elas não podem absolutamente conquistar o solo para uma problemática segura de suas bases. Esse solo também não pode ser conquistado através de melhorias fenomenológicas posteriores dos conceitos de sujeito e consciência (Bewusstsein) [NH: salto para dentro da presença [Dasein]]. Pois, com isso, não se pode ainda garantir que a colocação da questão se faça adequadamente. STMSCC: §43
Com a presença [Dasein] enquanto ser-no-mundo, o ente intramundano já sempre se descobriu. Esse enunciado ontológico-existencial parece concordar com a tese do realismo em que o mundo externo é real, ou seja, é algo simplesmente dado. Na medida em que, no enunciado existencial, não se nega o ser simplesmente dado dos entes intramundanos, ela concorda – por assim dizer doxograficamente – com a tese do realismo. Ela se diferencia, porém, em seus fundamentos de todo realismo porque o realismo toma a realidade do “mundo” como algo que necessita de prova e, ao mesmo tempo, como algo que pode ser comprovado. Em contrapartida, no enunciado existencial ambos são negados. O que a separa totalmente do realismo é a incompreensão ontológica de que sofre o realismo. Ele tenta esclarecer a realidade onticamente mediante o contexto efetivo e real entre as coisas reais. STMSCC: §43
Com relação ao realismo, o idealismo possui uma primazia fundamental, por mais oposto [NH: a saber, à experiência ontológico-existencial] e insustentável que seja no que respeita aos resultados, desde que ele próprio não se compreenda equivocadamente como idealismo “psicológico”. Quando o idealismo acentua que ser e realidade apenas se dão “na consciência” (Bewusstsein), exprime, com isso, a compreensão de que o ser não deve ser esclarecido pelo ente. Como, porém, não se esclarece que aqui se dá uma compreensão de ser e o que diz ontologicamente essa compreensão, isto é, que ela pertence [NH: a presença [Dasein], porém, (pertence) à essência do ser como tal] à constituição de ser da presença [Dasein] e como ela é possível, o idealismo constrói no vazio a interpretação da realidade. [276] Que não se pode esclarecer o ser pelo ente e que a realidade só é possível numa compreensão ontológica, isso não dispensa um questionamento do ser da consciência (Bewusstsein), da própria res cogitans. Como consequência à tese idealista, a própria análise ontológica da consciência (Bewusstsein) é pressignada como uma tarefa preliminarmente inevitável. Somente porque o ser é “na consciência” (Bewusstsein), ou seja, é compreensível na presença [Dasein], a presença [Dasein] pode compreender caracteres ontológicos como independência, “em si”, realidade em geral, e conceituá-los. Apenas por isso o ente “independente” pode fazer-se acessível como algo intramundano, que vem ao encontro na circunvisão. STMSCC: §43
Antes de uma orientação “perspectivista”, ainda existe a possibilidade de se apresentar a problemática da realidade com a seguinte tese: todo sujeito é o que é somente para um objeto e vice-versa. Nesse princípio formal, porém, os membros da correlação assim como a própria correlação permanecem ontologicamente indeterminados. No fundo, porém, o todo da correlação é pensado, “de algum modo”, necessariamente como ente, ou seja, com referência a uma determinada ideia de ser. Assegurando-se previamente o solo ontológico-existencial, mediante a indicação do ser-no-mundo, pode-se então reconhecer a correlação mencionada como uma relação formalizada e ontologicamente indiferente. STMSCC: §43
A discussão das pressuposições implícitas nas tentativas meramente “epistemológicas” de solucionar o problema da realidade [277] mostra que esse problema deve ser retomado como problema ontológico na analítica existencial da presença [Dasein]. STMSCC: §43
Caso o título realidade [NH: não realidade como coisidade] signifique o ser dos entes intramundanos simplesmente dados (res) – e apenas isso – para a análise desse modo de ser isto significaria: que o ente intramundano só pode ser concebido ontologicamente mediante o esclarecimento do fenômeno da intramundanidade. Esta, por sua vez, funda-se no fenômeno do mundo, o qual pertence à constituição fundamental da presença [Dasein] enquanto momento essencial da estrutura ser-no-mundo. Do ponto de vista ontológico, ser-no-mundo está imbricado na totalidade estrutural de ser da presença [Dasein], caracterizada como cura. Com isso, caracterizam-se também os fundamentos e horizontes cujo esclarecimento possibilita a análise da realidade. Apenas nesse contexto é que também o caráter do em-si torna-se ontologicamente compreensível. Nas análises anteriores, interpretou-se o ser dos entes intramundanos segundo a orientação desse contexto problemático. STMSCC: §43
Com efeito, sem que se explicite a base ontológico-existencial, já se pode caracterizar fenomenalmente, embora de modo limitado, a realidade do real. Foi o que fez Dilthey no tratado supracitado. Aí se faz a experiência do real no impulso e na vontade. Realidade é resistência ou, mais precisamente, o conjunto das resistências. A elaboração analítica do fenômeno de resistência constitui o [278] ponto positivo do referido tratado e a melhor confirmação concreta da ideia de uma “psicologia descritiva e classificatória”. Contudo, devido à problematização epistemológica da realidade, o efeito adequado da análise do fenômeno de resistência não logrou êxito. O “princípio da fenomenalidade” impediu Dilthey de chegar a uma interpretação ontológica do ser da consciência (Bewusstsein). “A vontade e seus freios emergem em meio à sua consciência” (Bewusstsein). O modo de ser dessa “emergência”, o sentido ontológico de “em meio a”, a remissão ontológica da consciência (Bewusstsein) ao próprio real, tudo isso necessita de uma determinação ontológica. A sua não-elaboração explica-se por Dilthey ter deixado a “vida”, para “atrás” da qual não se pode mais recuar, numa indiferença ontológica. Interpretar ontologicamente a presença [Dasein], porém, não significa uma recondução ôntica a um outro ente. As refutações feitas a Dilthey no plano epistemológico não podem impedir que o que há de positivo em sua análise, justamente o que ficou incompreendido nessas objeções, venha a tornar-se frutífero. STMSCC: §43
Neste sentido, Scheler retomou recentemente a interpretação da realidade de Dilthey. Ele defende uma “teoria voluntativa da presença [Dasein]”. A presença [Dasein] é entendida aqui no sentido kantiano de algo simplesmente dado. O “ser dos objetos só é dado de modo imediato na remissão ao impulso e à vontade”. Como Dilthey, Scheler não apenas ressalta que a realidade jamais se dá primeiramente ao pensamento e à apreensão, como indica, sobretudo, que, por isso, o próprio conhecimento não é julgamento e que o saber é uma “relação de ser”. STMSCC: §43
O mesmo que foi dito acerca da indeterminação ontológica dos fundamentos em Dilthey vale fundamentalmente para essa teoria. A análise ontológica dos fundamentos da “vida” não pode ser acrescentada posteriormente como uma infra-estrutura. É ela que sustenta, [279] tenta e condiciona a análise da realidade, bem como toda explicação do conjunto das resistências e de suas pressuposições fenomenais. Resistência vem ao encontro como não deixar passar…, como impedimento da vontade de passar… com isso, no entanto, abre-se algo pelo que impulso e vontade se empenham. A indeterminação ôntica desse pelo que se empenham não pode ser ontologicamente desconsiderada e compreendida como um nada. O próprio empenho … que se depara com resistência, e é o único que pode se deparar, já se acha junto a uma totalidade conjuntural. A sua descoberta, porém, funda-se na abertura do todo referencial da significância. Do ponto de vista ontológico, a experiência de resistência, ou seja, a descoberta daquilo que resiste a um esforço, só é possível com base na abertura de mundo. O conjunto das resistências caracteriza o ser dos entes intramundanos. As experiências de resistência apenas determinam faticamente o alcance e a direção da descoberta dos entes intramundanos que vêm ao encontro. A abertura de mundo não é introduzida pela sua soma, mas, ao contrário, pressuposta. Em sua possibilidade ontológica, o “ser-contra” e o “ser oposto” são sustentados pelo ser-no-mundo que já se abriu. STMSCC: §43
Resistência também não é experimentada num impulso ou vontade que “emergem” por si mesmos. Impulso e vontade mostram-se como modificações da cura. Somente um ente que possui esse modo de ser pode deparar-se com algo que resiste no sentido de algo intramundano. Se a realidade é determinada pelo conjunto das resistências, deve-se, nesse caso, atentar para duas coisas: primeiro, que nessa determinação se encontra apenas um caráter entre outros da realidade, sendo necessário pressupor para o conjunto das resistências o mundo já aberto. Resistência caracteriza o “mundo externo”, no sentido dos entes intramundanos, mas nunca no sentido de mundo. “Consciência (Bewusstsein) da realidade” é ela mesma um modo de ser-no-mundo. Toda a “problemática do mundo externo” está necessariamente remetida a esse fenômeno existencial fundamental. STMSCC: §43
Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o ser simplesmente dado mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição [NH: hodierno], ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo ser simplesmente dado é coisa simplesmente dada. A “natureza” que nos “envolve” é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está à mão e nem de algo simplesmente dado no modo de “coisidade da natureza”. Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da “natureza”, todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no fenômeno do ser-no-mundo. Disso resulta a seguinte compreensão: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença [Dasein]. STMSCC: §43
Na ordem dos nexos ontológicos fundamentais, das referências existenciais e categorias possíveis, realidade remete ao fenômeno da cura. Que a realidade se funda ontologicamente no ser da presença [Dasein], isso não pode significar que o real só poderá ser em si mesmo aquilo que é se e enquanto existir a presença [Dasein]. STMSCC: §43
A dependência caracterizada, não dos entes, mas do ser em relação à compreensão de ser, isto é, a dependência da realidade e não do real em relação à cura, assegura que a analítica da presença [Dasein] possa prosseguir sem resvalar numa interpretação não crítica que, guiada pela ideia de realidade, sempre de novo tenta se impor. Somente a orientação pela existencialidade, interpretada ontologicamente de modo positivo, pode garantir que, no decorrer da análise da “consciência” (Bewusstsein) e da “vida”, não se tome por base nenhum sentido indiferente de realidade. STMSCC: §43
Que não se possa conceber o ente, dotado do modo de ser da presença [Dasein], a partir de realidade e substancialidade, isso exprimimos com a seguinte tese: a substância do homem é a existência. A interpretação da existencialidade como cura e a sua delimitação frente à realidade não significam, porém, o fim da analítica existencial. Ao contrário, permitem apenas que os imbricamentos problemáticos com a questão do ser e seus possíveis modos, assim como o sentido de tais modificações, possam emergir de maneira ainda mais aguda: o ente como ente só é acessível se uma compreensão de ser se dá; a compreensão de ser como ente só é possível se o ente possui o modo de ser da presença [Dasein]. STMSCC: §43
Nossa palavra “realidade” [Wirklichkeit] só traduz adequadamente a palavra fundamental de Aristóteles para a vigência do vigente (entelecheia) se pensarmos “real” e “realizar” de modo grego, no sentido de trazer para (her) o desencoberto, de levar para (vor) a vigência. “Wesen”, “viger” é a mesma palavra que “währen”, “durar”, “permanecer”, “ficar”. Pensamos a vigência, como uma duração daquilo que, tendo chegado a desencobrir-se, assim perdura e permanece. Desde o tempo posterior a Aristóteles, este significado de energeia, ficar e permanecer em obra foi entulhado por outros significados. Os romanos traduzem, isto é, pensam ergon a partir da operatio, entendida, como actio, e dizem para energeia actus, uma palavra inteiramente outra e com um campo semântico totalmente diverso. O vigente numa vigência aparece, então, como o resultado de uma operatio. O resultado é o que sucede a uma actio, é o sucesso. O real é, agora, o sucedido, tanto no sentido do que aconteceu, como no sentido do que tem êxito. Todo sucesso é produzido por algo que o antecede, a causa. É, então, que o real aparece à luz da causalidade da causa efficiens. Até Deus é representado na teologia, não na fé, como causa prima, causa primeira. Por fim, na busca da relação causa-efeito, a sucessividade vai se deslocando para o primeiro plano e com ela a sucessão temporal. Nos últimos trabalhos de W. Heinsenberg, o problema causal se reduz ao problema de uma pura medição matemática do tempo. Todavia, uma outra coisa, não menos essencial, acompanha a realidade do real. Sendo um resultado, o efeito é sempre feito de um fazer, isto é, de um fazer entendido, agora, como esforço e trabalho. O resultado do feito de um fazer é o fato. A expressão “de fato” indica, hoje em dia, uma certeza e significa “certo”, “seguro”. Assim, em vez de “é certamente assim”, podemos dizer “é de fato assim” “é realmente assim”. Ora, com o início da Idade Moderna, a palavra “real” assume, a partir do século XVII, o sentido de “certo”. Não se trata de mero acaso e nem de um capricho inocente na evolução semântica de simples palavras.
No sentido de fato e fatual, o “real” se opõe ao que não consegue consolidar-se numa posição de certeza e não passa de mera aparência ou se reduz a algo apenas mental. Mas, mesmo nestas mudanças de significado, o real sempre conserva o traço mais originário de vigente, daquilo que se apresenta por si mesmo, embora se ofereça agora com menos ou com outra intensidade.
É que, agora, o real se propõe em efeitos e resultados. O efeito faz com que o vigente tenha alcançado uma estabilidade e assim venha ao encontro e de encontro. O real se mostra, então, como ob-jeto (Gegen-stand). [GA7:44-45; tr. Carneiro Leão:GA7CFS:43-44]