O desmantelamento — a desconstrução — do aparato conceitual metafísico da causalidade, da subjetividade e da razão, conforme estruturou a redução e a neutralização tradicionais do acontecimento, abre caminho para uma investigação fenomenológica sobre a eventualidade do acontecimento. Uma vez que o acontecimento não é mais referido às exigências do princípio da razão, não está mais ancorado em uma causa-sujeito e não está mais ordenado de acordo com uma ordem causal, torna-se possível deixá-lo dar-se ao pensamento, em sua própria eventualidade. “Pensar o acontecimento” significaria aqui não mais submeter o acontecimento à razão, mas deixá-lo ser (especialmente se o próprio pensamento for abordado como uma espécie de deixar-ser ou Gelassenheit 1) e, de fato, compreender a própria fenomenalidade como acontecimento, se for o caso, como argumenta Françoise Dastur, que ‘não pode haver pensamento do acontecimento que não seja, ao mesmo tempo, um pensamento da fenomenalidade’.2 A fenomenalidade poderia então ser repensada, não mais como objetividade, mas como um campo de acontecimentos. Se pensar o acontecimento significa pensar no ser do acontecimento, não no que acontece, nem no porquê acontece, mas no fato de que acontece, então um encontro com a fenomenologia torna-se inevitável. De fato, Heidegger afirma em Ser e Tempo que os fenômenos nunca são simplesmente o dado, mas sim o acontecimento do dado. Isso sugere, desde o início, que a fenomenalidade deve ser considerada como uma fenomenalidade de acontecimentos e a fenomenologia como uma fenomenologia do acontecimento.
Os fenômenos são acontecimentos no sentido adequado? Como acabamos de mencionar, um fenômeno, ou seja, o fenômeno com o qual a fenomenologia se preocupa, não pode ser reduzido a uma intuição empírica, a um dado ôntico. Na verdade, Heidegger rejeita explicitamente a noção kantiana de uma “intuição empírica” para designar o fenômeno com o qual a fenomenologia se preocupa.3 O fenômeno não pode ser reduzido à categoria do dado e, em vez disso, é definido desde o início por Heidegger no parágrafo 7 (ET7) de Ser e Tempo como um acontecimento, ou seja, o acontecimento da dação. O fenômeno deve ser abordado em seu sentido verbal como aquilo que se mostra ou se manifesta por si mesmo e a partir de si mesmo: “Assim, devemos ter em mente que a expressão ‘fenômeno’ significa aquilo que se mostra em si mesmo, o manifesto” (SZ, 28). O fenômeno é “o mostrar-se em si mesmo (das Sich-an-ihm-selbst-zeigen)” (SZ, 31), o que indica que Heidegger entende por fenômeno o sentido verbal de um aparecimento, e não simplesmente uma aparência. O termo fenômeno tem suas raízes no verbo grego phainestai e significa “aparecer”, “mostrar-se”. Como uma construção de voz média de phaino, phainestai significa trazer à luz, colocar em brilho, onde algo pode se tornar visível e manifesto. Phainomenon, no plural ta phainomena, deriva do verbo phaino, que significa iluminar, tornar visível. A palavra phaos-phos, luz, tem a mesma raiz: o advérbio phainomenos significa manifestamente ou visivelmente. Um fenômeno é o que aparece, o que se mostra.4 O fenômeno é abordado por Heidegger em seu sentido verbal, ou seja, como aquilo que se mostra ou se manifesta de si mesmo e a partir de si mesmo, e não simplesmente como o dado ôntico ou como a entidade.
O termo fenomenologia é formado por duas palavras gregas, phainomenon e logos. A fenomenologia é uma forma de trazer à luz os fenômenos em sua originalidade, um legein, um “deixar que algo seja visto (sehen lassen)” (SZ, 34). (Observo aqui mais uma vez como o motivo do deixar, lassen, está inscrito na própria fenomenologia e, de fato, é inerente à própria natureza do fenômeno. Será sempre uma questão de deixar o fenômeno dar a si mesmo, e não de fazê-lo aparecer ou constituí-lo por meio dos poderes intencionais de uma subjetividade). Ora, se a fenomenologia é um “deixar ser visto”, então o fenômeno da fenomenologia não pode ser aquilo que é simplesmente aparente ou manifesto; o fenômeno, precisamente como aquilo que deve ser tornado fenomenologicamente visível, deve ser abordado como aquilo que não se mostra (embora pertença ao que se mostra, pois Heidegger também enfatiza que “‘por trás’ dos fenômenos da fenomenologia não há essencialmente nada mais”, SZ, 36): “O que é que deve ser chamado de ‘fenômeno’ em um sentido distinto? O que é que, por sua própria essência, é necessariamente o tema sempre que exibimos algo explicitamente? Manifestamente, é algo que proximamente e em sua maior parte não se mostra de modo algum: é algo que está oculto, em contraste com aquilo que proximamente e em sua maior parte se mostra; mas, ao mesmo tempo, é algo que pertence àquilo que assim se mostra, e pertence a ele tão essencialmente a ponto de constituir seu significado e seu fundamento” (SZ, 35). Heidegger mostra que o próprio conceito de fenomenologia, na medida em que é definido, como observado anteriormente, como um “deixar algo ser visto”, implica necessariamente a retirada do fenômeno. “E só porque os fenômenos estão próximos e, em sua maior parte, não são dados, há necessidade de fenomenologia” (SZ, 36), escreve Heidegger provocativamente. A fenomenologia, em sua própria essência, é, portanto, uma fenomenologia do que não aparece, para nos referirmos à caracterização de Heidegger do sentido mais autêntico da fenomenologia como uma fenomenologia do inaparente (Phänomenologie des Unscheinbaren) no seminário de Zähringen em 1973. “Estamos aqui no domínio do inaparente: a própria presença é presença. . . . Assim entendida, a fenomenologia é um caminho que leva para longe para chegar antes… e permite que aquilo para o qual ela é levada se mostre. Essa fenomenologia é uma fenomenologia do inaparente.”5 O fenômeno original é o que não aparece, não por trás do que aparece (como se fosse uma realidade noumenal), mas no que aparece. O fenômeno original é o inaparente.6
Agora, para Heidegger, o que não aparece no que aparece é o ser: “No entanto, aquilo que permanece oculto em um sentido egrégio, ou que recai e é encoberto novamente, ou que se mostra apenas ‘disfarçado’, não é apenas este ente ou aquele, mas sim o ser dos entes” (SZ, 38).7 O fenômeno no sentido autêntico designa o ser dos entes, não o ente em si. Com essa afirmação, Heidegger rompe a conexão entre o fenômeno e o ôntico (embora o ôntico ainda retenha o movimento e a eventualidade do ser: um ente é o que é apenas em virtude do ser; ele não seria um ente de outra forma e não poderia estar presente a não ser pelo movimento da presença que o gerou e que ele manifesta). O fenômeno não é simplesmente o dado, não é a entidade, mas o que não aparece naquilo que aparece e que, por essa razão, exige e requer uma fenomenologia, Heidegger falando em seu curso sobre o Sofista de Platão de “uma luta constante contra a tendência de encobrir o que reside no coração do Dasein.”8 Como para Heidegger o ser nunca é um ente ou uma coisa, mas o acontecimento da presença de tais entes, já se pode suspeitar que um fenômeno, no sentido fenomenológico adequado, significa “acontecimento”.9 A tarefa, então, passa a ser entender a fenomenologia como uma fenomenologia do acontecimento…
- Martin Heidegger, Feldweg-Gespräche, ed. Ingrid Schüssler (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1995), GA77, 109. Martin Heidegger, Country Path Conversations, trans. Bret W. Davis (Bloomington: Indiana University Press, 2010), 71.[
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- Françoise Dastur, “Phenomenology of the Event: Waiting and Surprise,” in Hypatia 15, no. 4 (Fall 2000): 187. Hereafter cited as PE.[
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- Martin Heidegger, Sein und Zeit (Tübingen, Germany: Max Niemeyer Verlag, 1953), 31. I draw from both extant English translations: Being and Time, trans. John Macquarrie and Edward Robinson (New York: Harper, 1962), and Being and Time, trans. Joan Stambaugh, rev. Dennis J. Schmidt (Albany: State University of New York Press, 2010). Hereafter cited as SZ, followed by the German pagination.[
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- On this etymological analysis of the term phenomenon, see also Martin Heidegger, Einführung in die phänomenologische Forschung, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1994), GA17, 5–8. Martin Heidegger, Introduction to Phenomenological Research, trans. Daniel O. Dahlstrom (Bloomington: Indiana University Press, 2005), 4–5.[
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- Martin Heidegger, Seminare, ed. Curd Ochwadt (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1981), GA 15, 397, 399. Martin Heidegger, Four Seminars, trans. Andrew Mitchell and François Raffoul (Bloomington: Indiana University Press, 2003), 79–80. Hereafter cited as FS.[
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- On this issue, see my “The Secret and the Invisible: Of a Phenomenology of the Inapparent,” in a special issue on phenomenology for Frontiers of Philosophy in China 11, no. 3 (2016): 395–414.[
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- In On the Way to Language, Heidegger explained that Ereignis was the least apparent of such inapparent: “Das Ereignis ist das Unscheinbarste des Unscheinbaren—the least apparent of the unapparent.” Martin Heidegger, Unterwegs zur Sprache, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klosterman, 1985), GA 12, 247. Martin Heidegger, On the Way to Language (New York: Harper & Row, 1971), 128.[
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- Martin Heidegger, Platon: Sophistes, ed. Ingeborg Schüßler (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1992), GA19, 52. Martin Heidegger, Plato’s Sophist, trans. Richard Rojcewicz and Andre Schuwer (Bloomington: Indiana University Press, 1997), 36–37.[
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- As Gert-jan van der Heiden writes, “‘the event’ is the name for this being of appearing and coming—that is, the name for that which makes the appearance of the phenomenon possible.” Gert-jan van der Heiden, Ontology after Ontotheology. Plurality, Event, and Contingency in Contemporary Philosophy (Pittsburg, PA: Duquesne University Press, 2014), 157.[
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