Raffoul (2020:187-188) – ser-em-cada-caso (Jeweiligkeit)

Em relação ao surgimento de um pensamento do ser como evento, em seus trabalhos iniciais, como, por exemplo, na palestra de 1924 sobre “O Conceito de Tempo” (GA64), Heidegger atribuiu o evento ontológico aos efeitos de uma constituição temporal. Ele define Dasein (agora substituindo “vida fática”) como o ente que é constituído pela especificidade temporal, ou mais literalmente “ser-em-cada-caso” ou “em-cada-tempo” (Jeweiligkeit). O termo Jeweiligkeit nomeia uma das características básicas do Dasein, a saber, a de ser, cada vez, o ser da entidade que ele é, e tem o sentido de uma especificidade temporal: é cada vez tal ser. Jeweiligkeit deve, de fato, ser entendido como uma indicação de um “em cada tempo” (o advérbio je significando “em cada tempo”, jeweils “em cada tempo particular”, jeweilig “respectivo” no sentido daquilo que pertence a um tempo particular), um “cada vez” que também tem o sentido de um destino temporal: a cada um o seu próprio tempo. Jeweiligkeit designa o caráter do Dasein de estar temporalmente situado e individualizado. “O caráter fundamental do ser do Dasein é, portanto, primeiramente adequadamente apreendido na determinação, uma entidade que está no ser-ela-em-seu-tempo (das ist im Jeweilig-es-zu-sein).” Isso indica que o evento do ser acontece singularmente, na singularidade de um cada vez.

Começo observando a descontinuidade desse evento, já que Jeweiligkeit aponta para a singularidade essencialmente “descontínua” da existência. “Em cada caso” ou “cada vez” precisamente não significa “sempre” e, de fato, indica a interrupção de qualquer continuidade. Não há uma existência “geral” ou contínua. A existência não é a particularização de uma essência universal, mas a colocação em jogo do ser, cada vez. “Assim, o Dasein nunca deve ser tomado ontologicamente como uma instância ou caso especial de algum gênero de entidades como coisas que estão presentes à mão” (SZ, 42). A existência nunca é genérica, mas uma singularidade “rumo à morte”, e o ser “em geral” é declinado apenas no singular, o de uma existência fática que é cada vez minha. É por isso que, como Heidegger colocou, “A questão do significado do ser é a mais universal e a mais vazia. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade está inerente de sua mais aguda individualização em cada Dasein particular” (SZ, 39). O ser não pode ser distinguido do evento singular de uma existência que é cada vez entregue a si mesma. O ser acontece ao Dasein, Heidegger falando do caráter “ofensivo” ou “desafiador” da questão do ser, seu “poder de impacto”, atingindo o ser singular assim “tocado” pelo ser. Em sua própria dadividade, o ser é singularizado ao “tocar” ou atingir o Dasein, ao envolver o Dasein em seu evento. O evento da existência acontece singularmente, mesmo quando, como Jean-Luc Nancy insistiria, tal singularidade é necessariamente plural: no entanto, ela ainda permanece singular em sua própria pluralidade. O evento da existência é e só pode ser singular, de uma maneira “interrompida” ou sincopada. Essa determinação nos leva “mais perto” da essência do evento, segundo Derrida, que fala do evento como “aquilo que acontece apenas uma vez, apenas um tempo, uma única vez, uma primeira e última vez, de uma maneira sempre singular, única, excepcional, irreplaceável, imprevisível e incalculável.” Jean-Luc Nancy elabora essa lógica da singularidade, sobre o “cada vez” da existência. Em Ser Singular Plural, ele insiste na singularidade do ser, entendida em termos da escansão temporal de um “cada vez”. O ser acontece “au coup par coup”, golpe a golpe, ou passo a passo, Nancy indo tão longe quanto a afirmação de que “a essência do ser é o golpe.” Isso também poderia ser dito da seguinte maneira: a essência do ser é o evento, e só acontece no cada vez. O ser acontece cada vez como um “golpe de ser”: “uma lapada, golpe, batida, choque, encontro, acesso” (BSP, 33). O ser acontece cada vez singularmente.

(FR2020:Cap. 6)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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