Raffoul (2020:151-153) – o “quem” e o “o quê”

Em Ser e Tempo, o rompimento decisivo com a ontologia inadequada da substancialidade e a abertura para um pensamento do acontecimento ocorreram na distinção entre as categorias de existência, ou existenciais, e as categorias relativas à “presença-à-mão” (Vorhandenheit). Não se pode aplicar ao ser em suas categorias de acontecimento que só dizem respeito à determinação do “quê” das entidades. Para Heidegger, o ser deve ser abordado em seu “como”, ou seja, em seu modo de acontecer, e não como um “o quê”. O ser em si não é um ente (embora seja sempre o ser de um ente) e, consequentemente, não pode ser questionado como um ente: “Portanto, o ser, como aquilo que é questionado, deve ser exibido de uma maneira própria, essencialmente diferente da maneira pela qual os entes são descobertos.”1 É necessário forjar uma conceitualidade apropriada e, por assim dizer, sem precedentes, para fazer justiça ao acontecimento do ser, como Heidegger reconhece no final da introdução de Ser e Tempo: “Com relação à estranheza e à ‘deselegância’ da expressão nas análises que virão, podemos observar que uma coisa é fazer um relatório no qual falamos sobre os entes, mas outra é compreender os entes em seu ser. Para essa última tarefa, não nos faltam apenas as palavras, mas, acima de tudo, a ‘gramática’” (SZ, 39). É uma questão de forjar uma linguagem que seja apropriada ao ser em sua eventualidade, distinta de uma conceitualidade tradicional excessivamente ligada a determinações ônticas. Daí a distinção que Heidegger estabelece no parágrafo 9 (ET9) de Ser e Tempo entre existenciais e categorias. Os existenciais dizem respeito ao acontecimento de uma existência; as categorias se aplicam às entidades que não participam do acontecimento do ser. Uma distinção fundamental é estabelecida entre os caracteres de ser do Dasein (existenciais) e as determinações do ser de entidades que não são da ordem do Dasein (categorias). É necessário remover a compreensão que o Dasein (que está acontecendo através do acontecer do ser) tem de si mesmo das categorias pertencentes aos entes que não são “semelhantes ao Dasein”.

Esse é o sentido da oposição entre o “quem” e o “o quê”. Se a constituição ontológica do Dasein deve participar do acontecimento do ser, ela deve ser distinguida do que está presente, e a pergunta que indaga sobre seu ser deve ser igualmente distinguida da pergunta que interroga as entidades como meramente presentes. A fim de revelar o caráter de acontecimento do ser do Dasein, é necessário um tipo distinto de legein. O ser que somos responde à pergunta “quem”, enquanto o ser das entidades que estão “presentes” responde à pergunta “o quê”. “Os existenciais e as categorias são as duas possibilidades básicas para os caracteres do ser. As entidades que correspondem a eles requerem diferentes tipos de interpretação. As entidades que correspondem a eles exigem diferentes tipos de interrogação primária, respectivamente: qualquer entidade é um “quem” (existência) ou um “o quê” (presença-à-mão no sentido mais amplo)” (SZ, 45). Em Problemas Fundamentais da Fenomenologia (GA24), Heidegger distingue o questionamento de “quem” (Werheit) daquele de “o quê” (Washeit), explicando que a especificidade ontológica do Dasein está sempre em perigo de ser encoberta pela questão do quid. Agora, é quase como se a questão do “o quê”, a questão da essência, fosse inevitável, como se não fosse possível deixar de perguntar: o que desse quem, o que é esse quem? Entretanto, assim como é possível, até certo ponto e “dentro de certos limites”, falar da presença-à-mão do Dasein,2 também é possível conceber um “quê” do “quem” que seja irredutível ao “quê” como tal. O que é o “quem” em distinção do “o quê” mencionado anteriormente no sentido mais restrito da realidade da presença-à-mão? Sem dúvida, fazemos essa pergunta. Mas isso só mostra que esse quê, com o qual também perguntamos sobre a natureza do quem, obviamente não pode coincidir com o quê no sentido de ser o quê” (GA24, 169/120, trans. ligeiramente modificada). Heidegger rejeita a possibilidade de confundir o quem e o o quê, e a distinção ontológica entre os dois é preservada: interrogar o “o quê” do “quem” não é interrogar o “quem” como um “o quê”. Pelo contrário, é ao trazer à luz o ser específico de uma entidade que responde apenas à pergunta “quem?” que se torna possível problematizar o conceito de essência e desafiar uma ontologia cuja inadequação reside no fato de não reconhecer como “cada ente pode ser interrogado em relação ao seu quê, mas também em que sentido um ente deve ser interrogado pela pergunta quem” (SZ, 120).

O ser presente responde à pergunta: quid, o quê? Essa pergunta, é claro, é a questão da essência, que visa à essentia da entidade em questão. Agora, como observado, Heidegger escreve que a “essência” do Dasein está em sua existência (“Das ‘Wesen’ des Daseins liegt in seiner Existenz”; SZ, 42). O quid (essentia) do ente que somos (“na medida em que podemos falar sobre isso”, acrescenta Heidegger) deve necessariamente ser concebido com base no ser do Dasein, ou seja, com base na existência. Quando Heidegger fala da “essência” do Dasein, ele se certifica de escrevê-la entre aspas para marcar seu contraste com a determinação clássica de essentia e, em última análise, para indicar que o Dasein não tem uma essência. Como ele explicou na “Carta sobre o Humanismo” (GA9), “É por isso que a frase citada em Ser e Tempo (p. 42) [”a ‘essência’ do Dasein reside em sua existência”] tem o cuidado de colocar a palavra ‘essência’ entre aspas. Isso indica que a ‘essência’ agora não está sendo definida nem a partir de esse essentiae nem de esse existantiae, mas sim a partir do caráter ek-estático do Dasein.”3 Isso significa que o Dasein não exibe ‘propriedades’ (Eigenschaften) de uma entidade presente, mas sim ‘maneiras possíveis de ser, e não mais do que isso’ (SZ, 42). O ser do Dasein é um “modo de existir (Weise zu existieren) e, portanto, não (como) uma entidade presente” (SZ, 267). Aqui está o motivo do possível, que constitui um fio condutor na desconstrução da substância e para o surgimento de uma problemática do acontecimento. O Dasein “nunca se torna acessível como algo presente, porque o ser-possível (Möglichsein) pertence, a seu modo, ao tipo de ser do Dasein” (SZ, 248). O Dasein é uma existência (distinguindo esse termo, como Heidegger pretende, de existentia 4), ou seja, uma pura possibilidade de ser, ou seja, um puro acontecimento.

Da mesma forma, a individualidade do Dasein não pode ser entendida como se fosse uma característica substancial e subsistente do Dasein: Eu tenho esse eu para ser, a cada vez, como uma possibilidade e como um acontecimento: meu eu é “ser” (Zu-sein), é o caráter de uma existência. Certamente, essa característica do ser (o ser-acontecimento) pode ser mal interpretada dentro de uma conceitualidade inadequada, por meio de uma ontologia do subjectum, que reintroduz o paradigma da substancialidade e, portanto, o modo de ser da presença-à-mão. No parágrafo 25 (ET25) de Ser e Tempo, Heidegger mostra como o “eu”, o si, é tradicionalmente interpretado em termos daquilo que permanece na base, como o subjectum, perpetuando, em última análise, a primazia da substancialidade para entender o ser dos entes. “A substancialidade é a pista ontológica para determinar qual entidade deve fornecer a resposta à questão do ‘quem’” (SZ, 114). A crítica da “pergunta sobre o quê”, a questão da essência, deve então ser acompanhada por uma crítica da ontologia do subjectum. “Mesmo que se rejeite a ‘substância da alma’ e a coisificação da consciência, ou se negue que uma pessoa seja um objeto, ontologicamente ainda se está postulando algo cujo ser mantém o significado de presente” (SZ, 114). O ser é entendido como presença constante e subsistente (subjectum). É esse sentido de ser como presença-à-mão que permanece determinante na metafísica da subjetividade. “Pois o conceito ontológico do sujeito caracteriza não a individualidade do ‘eu’ qua si, mas a auto-similaridade e a estabilidade de algo que está sempre presente à mão. Definir o ‘eu’ ontologicamente como ‘sujeito’ significa considerá-lo como algo sempre presente” (SZ, 320). Compreender o eu a partir da autoevidência ôntica do eu obstrui sua eventualidade. A tarefa é evitar o encobrimento do Dasein cheio de acontecimentos sob uma interpretação predominante do “self” como a autodação imediata do si, em que o “eu” é tomado como uma identidade vazia para si mesmo. Compreender o ser como um acontecimento, e o ser do self como um acontecimento, requer a desconstrução da permanência substancial de uma entidade presente. Isso exigirá, em suma, uma desconstrução da substancialidade, cujo nome ontológico Heidegger chama de Vorhandendeit.

  1. Martin Heidegger, Sein und Zeit (Tübingen, Germany: Max Niemeyer Verlag, 1953), 6, slightly modified. I draw from both extant English translations: Being and Time, trans. John Macquarrie and Edward Robinson (New York: Harper, 1962), and Being and Time, trans. Joan Stambaugh, rev. Dennis J. Schmidt (Albany: State University of New York Press, 2010). Hereafter cited as SZ, followed by the German pagination.[]
  2. As Heidegger said famously in section 12 of Being and Time, where he explains that “even entities which are not worldless—Dasein itself, for example—are present-at-hand ‘in’ the world, or, more exactly, can with some right and within certain limits be taken as merely present-at-hand” (SZ, 55). In The Basic Problems of Phenomenology, Heidegger also states that “we ourselves are also present-at-hand in a certain way,” without, however, going so far as to collapse the ontological difference or demarcation between existence and presence-at-hand. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1975), GA24, 217. The Basic Problems of Phenomenology, trans. Albert Hofstadter (Bloomington: Indiana University Press, 1982), 153, trans. slightly modified. Hereafter cited as GA24, followed by German pagination first.[]
  3. Martin Heidegger, Wegmarken, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann (Frankfurt am Main, Germany: Vittorio Klostermann, 1976), GA9, 324. Basic Writings, ed. David F. Krell. 2nd ed. (New York: HarperCollins, 1993), 207. Hereafter cited as BW.[]
  4. “To avoid getting bewildered, we shall always use the Interpretative expression ‘presence-at-hand’ for the term ‘existentia,’ while the term ‘existence,’ as a designation of Being, will be allotted solely to Dasein” (SZ, 42).[]