Raffoul (2010:282-283) – responsabilidade, experiência do inapropriável

(Raffoul2010)

O que o pensamento de Heidegger revelou em relação à responsabilidade é que ser responsável significa assumir algo inapropriável: o chamado da consciência manifesta um ser-culpado irredutível; ser propriamente si mesmo é projetar-se resolutamente em direção a esse ser-culpado; o chamado do Ereignis vem de um retraimento, indicando uma expropriação ou Enteignis no coração da apropriação. Em todos os casos, a responsabilidade se revela como uma experiência do inapropriável. Para Heidegger, assim como para Derrida, a responsabilidade não pode ser concebida como a imputação ou atribuição de um ato a um sujeito-causa, mas sim como o encontro e a exposição a um evento como inapropriável (o que Derrida buscará compreender como aporia). Em Ser e Tempo, esses limites aparecem na noção de ser-jogado (Geworfenheit), que determina o fenômeno dos estados de ânimo e do nascimento, na finitude do Dasein como ser mortal e no ser-culpado do Dasein. O mais impressionante nesses fenômenos é o fato de que, longe de impedir a possibilidade da responsabilidade ética, eles constituem o que eminentemente obriga o Dasein e o chama ao seu ser mais próprio como finito (uma finitude que Derrida entenderia em termos de impropriedade ou impossibilidade). Esses fenômenos-limite representam as origens da responsabilidade e o lugar da eticidade da ética. A origem da responsabilidade é aqui um paradoxo. Jean-Luc Marion, de fato, afirma que o chamado “sempre surge de um paradoxo”, em sua interpretação do paradoxo do “fenômeno saturado”.1 Nossa volta às origens da responsabilidade revelou aporias constitutivas na própria estrutura da responsabilidade, como se essas origens fossem lugares de aporia. Já em Nietzsche, notamos que foi a partir da afirmação de uma irresponsabilidade de todas as coisas que emergiu outro sentido de responsabilidade, que ainda precisava ser desenvolvido. Em Sartre, encontra-se a aporia de ter que decidir sem a possibilidade de se apoiar em uma tabela a priori de valores, de ter que escolher sem saber como escolher, ou o paradoxo de uma responsabilidade por tudo que surge do nada. Em Levinas, a origem da ética como responsabilidade pelo outro é, ao mesmo tempo, a possibilidade de violência contra o outro. Além disso, a responsabilidade é a resposta a uma demanda infinita, uma demanda que necessariamente e originariamente excede as capacidades de um sujeito responsável/respondente finito. Em Heidegger, como vimos, encontra-se a aporia de ter que se tornar a base de uma nulidade, ou seja, de apropriar o inapropriável. Derrida lerá esses paradoxos como aporias, insistindo que a responsabilidade ética (“se é que existe”, como ele frequentemente acrescenta) deve ser a experiência, o sofrer ou suportar, de uma aporia, de um certo impossível. E essa formulação é ainda mais perturbadora porque é afirmada, precisamente, na perspectiva de um retorno às condições de possibilidade da ética e da responsabilidade.

  1. Jean-Luc Marion, Being Given: Toward a Phenomenology of Givenness, trad. Jeffrey L. Kosky (Stanford, Calif.: Stanford University Press, 2002), 293; tradução modificada.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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