(Raffoul2010)
O primeiro ponto a ser lembrado em qualquer discussão sobre Heidegger e responsabilidade é que, se há uma noção de responsabilidade em sua obra, ela não será e não poderá ser a de prestação de contas no sentido clássico. Também não será, como em Levinas, sua mera inversão. Em vez disso, Heidegger situará a questão da responsabilidade fora de uma problemática do ego, fora da egologia, e permitirá que ela surja a partir da própria abertura do ser onde o ser humano habita como Dasein. O conceito de responsabilidade tem sido tradicionalmente associado, se não identificado, com a prestação de contas, sob a autoridade de uma filosofia do livre-arbítrio e da causalidade, que por sua vez se baseava em uma metafísica centrada no sujeito. A prestação de contas — que definiu o conceito tradicional de responsabilidade, se não o esgotou — repousa, portanto, sobre as noções de agência, causalidade, livre-arbítrio e subjetividade. A responsabilidade como prestação de contas designa, assim, a capacidade do sujeito de ser a causa de seus atos e, em última instância, de apropriar-se e “assumir” seus atos e seus significados. Nesse enquadramento, as fontes fenomenológicas e ontológicas do que é chamado de “responsabilidade” permaneceram obscuras e negligenciadas. […]
Para Heidegger, a responsabilidade não pode ser prestação de contas no sentido clássico, pois o pensamento de Heidegger sobre o Dasein rompe decisivamente com a tradição da subjetividade.1 Heidegger não pensa o ser humano em termos de sujeito, e também sabemos que ele não pensa a liberdade em termos de livre-arbítrio ou causalidade. Essa é a implicação de seu pensamento sobre o Dasein: com a escolha desse termo, tratava-se para ele de apreender o ser humano não mais como sujeito, mas em termos da abertura do ser como tal, e apenas nesse aspecto. É por isso que o termo, em escritos posteriores, é frequentemente hifenizado como Da-sein para enfatizar a mera relação com o ser, uma relação que não é posta ou iniciada por nós. Heidegger explicou em um texto posterior que, com o termo Dasein, tratava-se para ele de caracterizar “com um único termo tanto a relação (Bezug) do Ser com a essência do homem quanto a relação essencial (Wesenverhältnis) do homem com a abertura (‘aí’ [Da]) do Ser (Sein) como tal”. Para esse fim, “o nome de ‘Dasein’ [ser-aí] foi escolhido para o âmbito essencial (Wesenbereich) no qual o homem está como homem.”2 Essa relação não é posta pelo Dasein humano, mas pertence ao próprio ser. A responsabilidade terá, portanto, que encontrar outra origem que não a do sujeito autônomo e livre. A base para uma identificação da responsabilidade com a prestação de contas desaparece no pensamento do ser, o que não significa que ele não abrigue outro pensamento da responsabilidade. Pois a responsabilidade não desaparece na desconstrução do subjectum. Ao mesmo tempo em que Heidegger desconstrói a base conceitual para qualquer noção de prestação de contas, ele consistentemente mantém que o Dasein — que não é um sujeito, nem um ego, nem uma consciência, pessoa ou animal racional, nem mesmo um homem — deve ser pensado em termos de responsabilidade, pelo menos em três aspectos: a responsabilidade define a essência do Dasein como uma preocupação com o ser; o Dasein chega a si mesmo em uma responsividade a um chamado; a responsabilidade nomeia a relação do homem com o ser, ou seja, a co-pertença do ser e do homem.
- Sobre esse ponto, tomo a liberdade de remeter o leitor ao meu Heidegger and the Subject (Amherst, N.Y.: Prometheus, 1999).[
]
- Martin Heidegger, “O caminho de volta ao fundamento da metafísica”, introdução a O que é Metafísica? (1949), em Pathmarks, ed. William McNeill (Nova York: Cambridge University Press, 1998), 283.[
]