“Pensar a vir [an das Kommen denken] eis uma maneira enigmática de o pensamento pensar o que pensa, de ser memória”, diz Heidegger em Devastação e Expectativa (p. 36). Aqui estamos quase vinte anos depois de Ser e Tempo, numa altura em que Heidegger já não usa a palavra Zukunft (a-vir), mas antes retrabalha a palavra Gegenwart (presente), escutando de uma forma inteiramente nova a expectativa (das Warten) que está no seu cerne, ao ponto de esta palavra vir a dizer aquilo a que “ordinariamente se chama o a-vir [Zukunft]” (GA12, 201; Caminho da Linguagem). A expectativa já não é então uma forma imprópria de esperar que algo aconteça no presente, mas a tensão que se volta para o vir, a fim de cuidar dele como vir. No diálogo Devastação e Espera, lemos:
O mais novo: Esperar, só o compreendi esta manhã ao amanhecer, e posso dizer-vos: é deixar vir [Kommenlassen].
O mais velho: Mas deixar vir o quê?
O mais novo: Que outra coisa poderíamos deixar vir, na expectativa pura e simples, senão a própria vinda?
O mais velho: E não algo que vem, em cuja vinda só ocasionalmente pensamos na expectativa.
O mais novo: Não, de fato; aquilo em que pensamos quando o deixamos vir é a própria vinda [p. 36; GA77, 217-218].
Mas de onde este vir retira recurso da sua inesgotável vinda, ele que não é nada senão cada vez vir? No final da Carta sobre o Humanismo (GA 9, 363), Heidegger escreve (com um parêntesis em francês no original alemão):
O pensamento tem a ver com o ser enquanto das Ankommende (advento). O pensamento, enquanto pensamento, tem parte na adventícia [Ankunft] do ser, no ser enquanto adventícia.
Este ser que Heidegger pensa aqui como o próprio movimento de vir a (literalmente: o vir [kommende] a [an]), é a quarta dimensão do tempo que a conferência Tempo e Ser (Questões iv, p. 34) nomeia, aquela em que as outras três estão reunidas na sua interação. Mas este ser, na verdade, Heidegger já não o pensa como “ser”, mas a partir da sua destinação (Schicken), do devir em que ele se dirige a si mesmo e vem até nós — do Ereignis que talvez se justifique então, como sugeriu F. Fédier, traduzir por uma palavra em uso até ao século XVI: avenance (ver “Comment traduire ‘’Ereignis‘’?”, Entendre Heidegger et autres exercices d’écoute, p. 151 f.).
Contribuições à Filosofia de 1936-1938, com o subtítulo “Ereignis” (tr. fr. avenance), pensa, a partir desta avenance, a morada da verdade do ser como “história do ser”. A sexta seção do livro intitula-se die Zu-künftigen (literalmente: os que são a vir). Não se trata daqueles que virão um dia, mas daqueles cujo pensamento é exigido pelo a-vir próprio da avenance. São “aqueles que são a-vir, aqueles que, no fundamento de ser-o-aí, se mantêm em medida de ter uma contenção no coração, só sobre os quais o ser (salto) enquanto avenance ad-vem [zu-kommt], fazendo-os vir a si mesmos e capacitando-os para albergar a sua verdade” (GA65, 401). (LDMH)