Patocka (1995:155-156) – a perda da reciprocidade presente

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(…) o que é que o outro pode significar para nós quando já não está conosco na reciprocidade presente? A perda da reciprocidade presente significa, evidentemente, antes de mais, a perda da possibilidade de despertar o outro para nós. Somos sensíveis a esta perda, que não é um simples deficit, mas um deficit sentido e experimentado como a perda da nossa possibilidade mais original, como uma anulação da nossa própria existência; esta perda é a morte vivida; a não existência do outro torna-se um viver como não se vivesse. Não só falta o preenchimento de que dependíamos e a que estávamos habituados, de modo que a nossa intenção se perde no vazio, como também deixamos de ter a possibilidade de nos sentirmos nós mesmos que o outro nos dava, a possibilidade que éramos para nós mesmos sobre o fundamento do outro.

A reciprocidade presente significa que o outro vive em possibilidades que ainda estão à espera de serem realizadas; a nossa própria vida é estendida em direção a essas possibilidades e dependente delas na sua vigilância. Vivemos com o outro num drama partilhado e recíproco, e o que “precisamos”, o que exigimos, o que nos fascina e satisfaz, é precisamente este desenrolar dramático, mesmo que seja o estereótipo mais banal dos encontros, das trocas, dos pequenos prazeres e inconvenientes da vida quotidiana. O amor, por exemplo, quer a presença carnal na sua forma mais forte, bem como toda a tensão da renovação da vida corporal que a acompanha, uma presença que deve desenrolar-se e ser vivida no presente. Outras relações vitais, por outro lado, dependem da realização de certas intenções dos outros para conosco, ou das nossas próprias visando-os — os pais, por exemplo, querem formar os filhos para serem independentes, os conduzir a si próprios, e aí onde o fio é rompido, a intenção esgota-se.

Este impulso vazio pode então criar uma reciprocidade falsa, ilusória, tal como um impulso corporal inconciliável dá origem a um membro fantasma, inexistente. Pode criar uma pseudo-presença onde vivemos num estado de como se… Não devemos aceitar que o presente se tenha tornado passado, e devemos entender a não atualidade como uma simples partida, uma distância onde a presença do outro ainda vive. Este impulso está sempre presente em nós, embora seja normalmente combatido por uma consciência da realidade, da reciprocidade que está definitivamente ausente e que nunca será ressuscitada. É este conflito que dá origem à dor da perda.

Erika Abrams

[PATOCKA, Jan. Papiers phénoménologiques. Grenoble: Jérôme Millon, 1995]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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