(Monticelli1997:207-208)
Deveríamos ter usado, em vez de “sofrer”, a palavra que o Petit Robert considera arcaica – “padecer” – que expressa com muito mais abrangência um dos dois traços relevantes das vivências originárias do ser próprio: a afetividade.
“Originárias” no sentido de que estas vivências são a fonte (origem) do conteúdo intuitivo da ideia de “selfhood” [ipseidade]: ou seja, não existe primeiro um “si mesmo” que seria dado independentemente destas vivências, e ao qual depois se atribuiriam tais vivências, mas pelo contrário, aquilo que chamamos de “si” só é dado através destas vivências.
Examinemos isso mais de perto. O que significa ser sujeito de tais vivências? Significa estar submetido a elas, subjacere. Todas as vivências afetivas têm em comum este traço que a própria palavra já indica, esta característica de ser-afetado que distingue, por exemplo ao nível sensorial, o tato da visão: não se toca sem se sentir tocado, enquanto se vê sem se ver vendo. Eis um primeiro traço constitutivo do ser-sujeito – e um dos significados primários da palavra: subjacente ou submisso à própria experiência de outra coisa.
Não se pode desfrutar de algo sem com isso se alegrar um pouco, enquanto se pode muito bem pensar em algo sem pensar em si mesmo. Jeanne Hersch descreveu magistralmente o “Nascimento de Eva” numa meditação fenomenológica sobre um baixo-relevo medieval de Autun 1: Eva emerge de um emaranhado de vegetação, “nascendo” no ato de tocar o fruto proibido. Neste ato, Eva se sente tocada, verdade que o artista restitui repetindo no [208] outro braço, infantilmente recolhido para explorar o rosto, este sentimento primordial de si. Aqui o autos opõe-se ao allo, a ipseidade ao mundo. É este traço do significado da palavra autos que atua numa palavra como “autêntico”.
- HERSCH J., Eva ou o nascimento eterno do tempo, in Textes, Le feu de Nuict, Fribourg 1985.[
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